Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Nelson Cadena
Publicado em 16 de junho de 2022 às 05:00
As festas de São João, no Brasil, nasceram em volta de uma fogueira, bem antes das tradições ibéricas serem repaginadas em nosso meio, aculturadas através das comidas típicas, das cantigas dos trovadores e poetas, das ladainhas das rezadeiras, das simpatias, dos balões no céu, das quadrilhas de origem francesa e do forró pé de serra como foi rebatizado o forró de raiz.>
Os jesuítas introduziram entre nós o Carnaval e as festas juninas nas aldeias indígenas, numa estratégia de aproximação para facilitar a catequese. Festejar era uma linguagem que os índios habituados a celebrar os grandes eventos, correspondia a qualquer manifestação que incluísse dança e música e a fogueira era o elemento agregador. O padre Fernando Cardim, em 1583, assim descreveu: “Três festas celebram estes índios com grande alegria, aplauso e gosto particular. A primeira é as fogueiras de S. João, porque suas aldeias ardem em fogos, e para saltarem as fogueiras não os estorva a roupa, ainda que algumas vezes chamusquem o couro...”>
Anos depois, em 1625, quando a esquadra de Fradique de Toledo Osório retomou a Bahia dos holandeses invasores, os espanhóis celebraram as festas juninas a bordo de três navios: “Colocaram nesta noite lampiões acesos, tanto nos mastros, nas gáveas, como em todos os pontos, de todas as vergas, o que deu a impressão de muitas estrelas” narrou o soldado Johann Gregor Aldenburgk. “No próprio dia de São João enfeitaram estes três galeões com bandeiras e bandeirolas”.>
Os historiadores brasileiros, baianos incluídos, mesmo os estudiosos do que se chamava folclore, influenciados pelas narrativas da igreja Católica em torno da festa de São João, descuidaram do lado mundano da celebração, da participação e influência do povo, de modo que pouco se conhece desta festa. Sua história entre nós. Mesmo no século XIX, com o surgimento da imprensa, a narrativa da fogueira das primas Isabel (mãe de São João Baptista) e Maria (mãe de Jesus) se sobrepôs a qualquer outro elemento factual. Construímos um imaginário de festa popular com retrovisor de quase dois mil anos.>
Se a festa de São João nasceu em volta da fogueira, nem sempre a fogueira foi unanimidade. O governo e a mídia, volta e meia, investiam contra a fogueira, setores conservadores enxergavam na tradição resquícios de civilizações bárbaras. Foram proibidas, mas o povo continuou a acendê-las. Em 1855, durante a epidemia de Cólera Morbus, proibidas de novo, “E os que viam as autoridades mandarem queimar barricas com alcatrão para purificar os ares diziam que aquilo era castigo. Não se bole impunemente com São João”, contou Hildegardes Vianna em crônica. Proibidas outra vez, em 1884, como noticiou o Jornal de Notícias, o povo não tomou conhecimento e nem as autoridades tiveram o topete de reprimir, de fato.>
Bem antes, em 1846, O Guaycuru, via nas fogueiras uma ameaça pública: “Não nos lembra que houvesse jamais um presidente que não empregasse os meios para coibir as desenvolturas e excessos dessa escandalosa, brutal e feroz licença, que durante uma noite inteira, põem a propriedade, a segurança e a vida de toda uma cidade, a mercê de vulgachos desalmados que se apossam das ruas e das praças públicas... De todos os legados que nos transmitiram os séculos de barbaridade, nenhum chegou a nossos dias... em todo o horror de suas feições, como são esses folguedos canibalescos de nossa noite de São João.”>
A despeito da barbárie midiática, a fogueira continua queimando, na cidade e na roça, para alegria dos baianos.>
Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras>