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Roberto Midlej
Publicado em 30 de abril de 2023 às 06:49
- Atualizado há 2 anos
Até domingo passado, às oito da manhã, nunca tinha ouvido falar do bispo Bruno Leonardo. Muito menos de sua igreja, a Igreja Batista Avivamento Mundial. Pois fui à Fonte Nova, numa missão profissional destes plantões de fim de semana, cobrir um culto/show do líder religioso.>
Já havia me impressionado com o número de seguidores dele no YouTube, que passa de 14 milhões. Aquilo me dava uma ideia da popularidade dele e já imaginava que a Fonte Nova poderia estar cheia. Mas quando cheguei lá, fiquei meio assustado com o cenário: muita gente aglomerada e barrada na porta, empurra-empurra, berros, desespero de quem não conseguia entrar, mesmo com o ingresso na mão. A entrada, diga-se, era gratuita.>
Segundo a administração da Fonte Nova, entraram 62 mil pessoas. Para se ter uma ideia do que isso significa, quando a maior estrela viva da música internacional, Paul McCartney, esteve no estádio, foram 53 mil pessoas presentes.>
A histeria na porta se comparava ao que testemunhei há 35 anos, quando fui ao show do Menudo naquela mesma Fonte Nova. Com uma diferença: no show da boyband, eram crianças e adolescentes. Ontem, eram, na maioria, adultos e idosos com um comportamento de idolatria que poucas vezes presenciei. Acho que nem os fãs de Ivete têm aquele nível de devoção.>
Ao entrar no estádio, quando vi aquele mar de gente, tomei um susto e, confesso, me emocionei e meus olhos marejaram. Mas era um sentimento misto: de um lado, uma emoção 'positiva', de ver no olhar das pessoas uma ponta de esperança de ter uma vida melhor; do outro, senti uma angústia profunda, de saber que as pessoas estão ali por pura desesperança ou desespero mesmo. E isso também estava no olhar delas.>
Vi um menininho de, no máximo, uns quatro anos, no cangote do pai, cantando como se estivesse num verdadeiro transe, de olhos fechados e muito emocionado. E novamente vivi um paradoxo: se o menino parecia estar curtindo o momento, pensei na lavagem cerebral que ele deve viver em casa.>
Enquanto isso, o bispo condenava os prazeres mundanos, como reza a cartilha religiosa: "Muitos de vocês que estão aqui hoje estavam em fevereiro se esbaldando no Carnaval". Ou seja: ter momentos de prazer e alegria é um pecado, era esse o recado.>
E enquanto ele cantava uma música acompanhada por todos ali, eu ficava pensando o que levava aquelas pessoas a pegar um sol fortíssimo às 9h da manhã, enfrentar uma fila absurda, um engarrafamento gigantesco... e serem tratados de maneira indigna pela organização, sendo barradas, mesmo com o ingresso na mão.>
E, embora não tenha lido nada sobre isso e desconheça textos que abordem o assunto, eu não tenho mais dúvida: as igrejas tomaram definitivamente o lugar do Estado brasileiro, que não supre as necessidades básicas daquelas pessoas. A sensação que tenho é que não é só uma questão de fé. As pessoas não estão ali apenas para ter um conforto espiritual, para ter paz.>
As pessoas se apegam à religião - e, principalmente, às igrejas - porque o Estado não dá conta de sua parte. Porque o Estado é incapaz de prover saúde, segurança, educação, dinheiro... então, resta ao povo acreditar numa força espirutual que lhes dê essa esperança, que faça "milagres". Ora, pensa um daqueles: "Se meu filho precisa de uma cirurgia urgente e, se não fizer, vai morrer, o que posso fazer, se ele só poderá ser operado daqui a seis meses, porque não há vaga no SUS? Só me resta orar e pedir que Deus opere um milagre".>
"Se meu marido é alcoólatra e me ameaça de morte diariamente, o que fazer se o Estado não o mantém na prisão? Orar!"; "Se meu filho vai voltar do trabalho de madrugada e eu não sei se voltará vivo, por causa do tráfico que domina a área onde moro, o que me resta fazer se a polícia só entra aqui para matar? Orar!"; "Se o Estado não fornece vagas suficientes na escola onde eu queria que meu filho estudasse, que esperança me resta? Orar e pedir a Deus que opere um milagre!".>
E foi assim que um insano ficou por quatro anos na presidência da República, conduzido por homens como o mesmo bispo Bruno Leonardo, que declarou voto a ele em 2022. Ou o Estado volta a cumprir seu papel ou estaremos nas mãos desses messias. Aliás, "volta" nem é o termo adequado, porque o Estado brasileiro jamais cumpriu seu papel.>
Posso estar falando uma imensa bobagem, mas pelo que sei, em países realmente desenvolvidos esse fanatismo religioso não existe nessa proporção que temos visto no Brasil. Justamente porque lá, o Estado cumpre seu papel. (que fique claro: ter fé é essencial e acho ótimo. O que não é bom é transferir essa fé para pessoas ou instituições)>