A hora de pendurar as chuteiras

Não, a vida não costuma oferecer compensações, mesmo aos que contribuem para fazer do mundo um lugar menos inóspito

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  • Paulo Sales

Publicado em 19 de fevereiro de 2024 às 05:00

Já faz alguns meses que um amigo me falou da perda de uma pessoa muito querida. Era uma mulher culta, professora universitária, que vivia o seu auge intelectual. Eles cultivavam uma amizade sólida, forjada na busca por conhecimento e na paixão pela arte, e costumavam compartilhar suas impressões sobre os filmes a que assistiam. Ela tinha 76 anos. Deixou o mundo repentinamente, após complicações pós-operatórias de uma cirurgia que a princípio parecia banal. Planejava voltar a Pompeia, na Itália, para conferir de perto o resultado de escavações recentes nas ruínas provocadas pela erupção do Vesúvio no ano 79 d.C.

Meu amigo estava arrasado e tentei consolá-lo. Foi uma conversa rápida, enquanto levávamos nossos cães para passear no parque. Aquele breve e triste relato ficou remoendo em mim. Pensei no que certas religiões costumam pregar: estamos aqui para cumprir missões predefinidas e o nosso tempo sobre a Terra faz parte dessa missão. Mas será que a amiga do meu amigo, após cumprido o seu propósito, não merecia ao menos desfrutar de uma derradeira viagem a Pompeia? Será que cada um de nós não merece desfrutar de igual despedida, seja em Pompeia, Paris ou na cidadezinha de onde vieram os nossos antepassados?

Não, a vida não costuma oferecer compensações, mesmo aos que contribuem para fazer do mundo um lugar menos inóspito. Como escreveu Julian Barnes, “premiar a virtude não compete à vida”. Ser gentil, cultivar e compartilhar a sabedoria, exercitar a compaixão, nada disso acrescenta dias, meses ou anos à existência quando chega a hora dela findar. E o mais irônico nisso tudo é que enquanto alguns clamam por esses nacos de tempo a mais, outros parecem viver sem razão. Vagam sem rumo flanando por reminiscências do passado, sem encontrar sentido no presente ou enxergar perspectivas no futuro.

Sempre divago sobre esse tema e volto inapelavelmente ao ponto de partida: o que define quem fica e quem vai, para além do puro acaso, do carro vindo na contramão, do encontro fortuito com um assaltante, do carcinoma oculto no pâncreas ou das placas de gordura nas veias que preparam sorrateiramente um infarto. Quem é o titereiro, já que somos meros títeres de um mundo sem razão? Por que ele vive dando gargalhadas dos nossos planos mais prosaicos? Do alto de minha ignorância, dou aqui o meu palpite: não há ninguém a olhar por nós. Estamos sozinhos que nem crianças perdidas numa guerra, aprendendo a nos virar com o que temos.

Em um trecho do documentário Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você, o filho da cantora, João Marcelo Bôscoli, comenta que ela não chegou a conhecer o processo de decadência artística – Elis morreu aos 36 anos. Pode ser que, com essa afirmação, ele estivesse querendo dizer que ela foi poupada do declínio comum aos que envelhecem. Mas será que Elis, como qualquer um de nós, não merecia sorver o agridoce sabor do ocaso? A decadência, seja ela artística ou física, não seria um desfecho melhor do que abandonar a vida no auge?

Às vezes, é preciso assistir a um filme ou ouvir uma canção para nos darmos conta da falta que certas pessoas fazem. Elis completaria 79 anos no próximo dia 17 de março. Ou seja: desde 1982 somos privados do timbre da sua voz e do magnetismo das suas interpretações. Revisitar a sua obra não atenua a sensação de vazio, antes a acentua. Porque através dela conseguimos mensurar o que Elis poderia ter produzido nesses 42 anos que a separam do presente. Pouco importa se hoje estaria afônica ou sem inspiração: ela estaria viva!

Mais cedo, pouco antes de me debruçar sobre esta crônica, eu tomava um vinho na varanda e ouvia um disco antigo de Caetano. Em dado momento, ele começou a cantar If You Hold a Stone e aquilo mexeu comigo. A solidão do exílio, a avassaladora saudade de casa e uma tristeza amordaçada se manifestavam em cada verso, até chegar o trecho em que cita Paulo Diniz: “Eu não vim aqui para ser feliz. Cadê meu sol dourado, cadê as coisas do meu país?”. Nesse momento, eu me vi com os olhos cheios de lágrimas, que materializavam uma profusão de sentimentos. Não só evocados pela canção, mas meus também.

Penso que enquanto a vida nos comove, como me comoveu ao ouvir Caetano, não estaremos prontos para ir embora. Ela nos arrebata, nos leva ao delírio, nos preenche de prazer e nos oferece epifanias. Difícil é fazer com que essa fagulha se apague antes dos 80, 90, 120 anos. Afinal, sempre teremos uma Pompeia para voltar. Certa vez vi um depoimento de Raul, ex-goleiro do Flamengo, no qual ele conta que percebeu que era hora de parar quando sofreu um gol e não sentiu raiva ou frustração ao ir buscar a bola no fundo das redes. É mais ou menos por aí. O problema é que, fora das quatro linhas, quase nunca queremos pendurar as chuteiras.