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“Aceite o que vier”

Como ter serenidade para, em meio a um terremoto de sentimentos extremos, dar um conselho que denota ao mesmo tempo desapego e resignação diante do fim de alguém tão amado?

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 28 de julho de 2025 às 13:44

Numa entrevista à revista Elle publicada no ano passado, a cantora Preta Gil revelou o que seu pai lhe disse num momento particularmente duro do enfrentamento ao câncer, que acabaria por matá-la no último dia 20: “Preta, a gente luta até um limite. Há outra esfera da cura que não passa por nós, que não podemos decidir. Então, seja resiliente: aceite o que vier”.

É uma afirmação que surpreende quando saída da boca de um pai. Como ter serenidade para, em meio a um terremoto de sentimentos extremos, dar um conselho que denota ao mesmo tempo desapego e resignação diante do fim de alguém tão amado? Em se tratando de Gilberto Gil, porém, o conselho soa até certo ponto compreensível. Com seu jeito muitas vezes enviesado de pensar e se expressar, Gil é capaz de encontrar flancos desconhecidos e enveredar por eles, transformando calvário em redenção.

Não é o primeiro filho que Gil vê morrer, o que torna o seu estoicismo ainda mais louvável. Talvez seja uma forma de evolução espiritual, como me disse uma amiga. Cético que sou, respondi que sim, é possível, embora pense que se trata na verdade de uma capacidade maior de resistência ao infortúnio. Afinal, o que tornaria algumas pessoas mais suscetíveis a essa evolução espiritual? Onde encontrar sabedoria para se conformar com o inaceitável e acomodar-se diante do incompreensível?

Drummond só conseguiu suportar por 12 dias a perda da única filha, Maria Julieta. Aos 85 anos, pouco mais do que Gil tem hoje, também era um homem sábio. Eu penso que ele deu a mais bela demonstração de amor incondicional de um pai por uma filha: não conseguir viver sem ela. Se não estou enganado, o poeta itabirano era um cético. E os céticos costumam ser refratários a divagações esotéricas. Somos materialistas, racionais, conscientes da própria incompletude e da própria extinção. Como escreveu Christopher Hitchens: “Eu não tenho um corpo, eu sou um corpo”.

Tudo isso me fez lembrar de uma conversa que tive certa noite com um velho amigo, enquanto bebíamos vinho no meu restaurante preferido de Salvador, um bar de tapas em frente ao mar do Rio Vermelho. Eu falava sobre a evolução do homo sapiens, desde o tempo em que a espécie era formada por caçadores-coletores – não me pergunte como chegamos a um assunto como esse: o vinho opera milagres. Então meu amigo discordou de toda aquela conversa. Profundamente religioso, ele defendeu a tese da evolução humana conforme consta na Bíblia. Ou seja: que seríamos fruto do Gênesis.

Eu retruquei que o conteúdo da Bíblia não se ampara na ciência, portanto não poderia ser levado a sério como fonte histórica. Ele devolveu: “Mas essa é a sua ciência”. Aquilo me chocou. Não, não era a minha ciência. Era a ciência de Galileu, Copérnico, Darwin, Newton, Einstein e tantos outros que dedicaram a vida a nos conduzir até aqui, mesmo com nossa proverbial relutância em tomar o rumo certo. Naquele momento, percebi que estávamos separados por um abismo, e não adiantaria prosseguir. Cada um tomou seu gole de vinho e passamos para um tema mais ameno.

Ressalto que não faço proselitismo da minha incredulidade. No decorrer das décadas, meu inconformismo diante da finitude se converteu numa espécie de resignação desesperada. Reconheço as religiões como parte indissociável da cultura humana. Admiro o Eclesiastes e a Doutrina de Buda, tenho minhas pequenas epifanias e cultivo uma relação bastante amistosa com Yemanjá, que me protege nas águas do mar, e com São Pedro, que costuma me poupar de voltar encharcado para casa. Enfim, mistério sempre há de pintar por aí.

Voltando a Gil depois de toda essa digressão sem propósito, reconheço que não seria capaz de dizer a minha filha algo como “aceite o que vier”. Definitivamente, não. Eu desabaria. Talvez porque seja um neandertal espiritual, ao qual faltam o desprendimento e a elevação necessários para engendrar algo assim: “Tenho que dizer adeus. Dar as costas, caminhar decidido pela estrada, que ao findar vai dar em nada. Nada, nada, nada, nada. Nada, nada, nada, nada. Nada, nada, nada, nada do que eu pensava encontrar”.