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Flavia Azevedo
Publicado em 28 de julho de 2025 às 21:22
Como você sabe, a morte de Preta mobilizou muita gente com sinceridade. Observei - de longe, triste e comovida - as abundantes reações de pesar e carinho. Porém, como sempre, junto com a comoção, surge aquele movimento que já conhecemos bem: publicações de intimidades, relatos de encontros do passado e o povo “do contra” que não se contém. Dessa vez, foi uma explosão do fenômeno e a dinâmica é curiosa. De repente, a memória da pessoa falecida passa a ser repartida e consumida como uma espécie de bem coletivo. Vamos chamar de “canibalismo digital”, uma releitura explícita do antigo canibalismo. Só que, agora, em vez do corpo, “comem” a imagem dos mortos famosos, em rituais que envolvem imagens, palavras e posts. Explico. >
O impulso é antigo. Povos de diferentes culturas usaram, ao longo da história, gestos simbólicos para absorver a força de quem se foi. Os Wari’, na Amazônia, por exemplo, praticavam o canibalismo funerário como forma de homenagem aos mortos, acreditando que consumi-los ajudava no processo de luto e ligação espiritual. Já os Tupi acreditavam que ingerir os inimigos era uma maneira de herdar sua coragem. Faraós egípcios realizavam rituais para incorporar qualidades divinas. Monges, em algumas tradições orientais, viam na “alimentação da alma” uma forma de se aproximar da sabedoria. Mesmo quando não há violência, o gesto de se apropriar de algo do outro - da força, da presença, do prestígio - está presente. A diferença é que hoje esse gesto acontece diante das telas, em tempo real, e para um público imenso.>
Com a morte de Preta, essa dinâmica ficou muito evidente. Desde que foi anunciada, começaram a surgir fotos antigas, vídeos de encontros em aeroportos, mensagens trocadas em outros momentos, lembranças resgatadas e publicadas em tempo recorde. Em muitos casos, era visível a tentativa de se mostrar próximo, envolvido, íntimo. Era óbvio o desejo de fazer um “link”, por mais distante que a relação fosse, de fato. Parte disso é natural, claro. Somos feitos de memórias e afetos. Mas outra parte, evidentemente, responde à lógica da visibilidade, à ideia de que é preciso aparecer, marcar presença, ter algo a dizer. Assim, o luto vira conteúdo monetizável, capital simbólico e, em tempos difíceis, até “empregabilidade”.>
Um exemplo bem louco foi a publicação da pastora Sarah Sheeva, que compartilhou prints de mensagens privadas enviadas a Preta ao longo de mais de um ano. As mensagens, que nunca foram respondidas, ofereciam orações e conselhos religiosos. Depois da morte de Preta, Sarah expôs esse conteúdo nas redes, e ainda curtiu comentários que sugeriam que a artista havia rejeitado a fé. A atitude dividiu opiniões. Mesmo entre os que perceberam as mensagens como uma expressão de carinho, houve desconforto por entenderem a exposição de um gesto de apoio como autopromoção.>
Até que ponto se pode mostrar algo que a outra pessoa, em vida, não quis tornar público? Essa reflexão parece ter passado pela cabeça de pouca gente. Desde a semana passada, circulam prints que “provam por A+B” que Preta gostava de determinadas pessoas, que eram íntimas, que caminhavam lado a lado, que Preta havia convidado para eventos e trabalhos, que se falavam sempre e tal.>
Outros episódios seguiram, de certo modo, a mesma linha. Rafael Ilha (nem lembrava dessa pessoa) criticou o local do velório - o Theatro Municipal do Rio -, alegando que a escolha era exagerada, já que, segundo ele, Preta "não era uma cantora top". Ele chegou a levantar suspeitas sobre gastos médicos e herança, sem apresentar provas. Já Marcos Mion, ao postar uma homenagem com uma coroa de flores, foi acusado de usar o momento para se promover. São situações diferentes, mas que apontam para a mesma questão: a dificuldade de lidar com o luto público sem transformá-lo em “ocasião”.>
Homenagens a Preta Gil
Nas redes, a comoção ganhou um formato. Não bastava sentir - era preciso mostrar que se sentia. Muitas das lembranças compartilhadas pareciam carregar um segundo objetivo: reforçar uma ligação, ainda que frágil. Emoção virou medida. Quem chorou mais, quem tinha mais histórias, quem apareceu ao lado. No meio disso, o que é privado se misturou ao que é publicável, em mais uma amostra da nossa dificuldade coletiva de separar o que se vive do que se exibe para qualquer um.>
Baudrillard escreveu que o excesso de imagens termina por apagar o real. O que ele dizia, décadas atrás, parece ter se cumprido: agora, a imagem não representa, ela substitui. No caso do luto, isso é ainda mais interessante e traz muito o que pensar. Nesse momento, uma lembrança legítima, quando publicada de forma apressada ou estratégica, se torna outra coisa. O gesto pode ser sincero e, ainda assim, entrar num jogo esquisito.>
Talvez, o traço mais delicado do “canibalismo digital” seja o fato de que ele nem sempre parte de um impulso oportunista ou “do mal”. Muitas vezes, pode vir da vontade sincera de dizer que se importa. Mas, quando essa vontade se transforma em compulsão por visibilidade, em pressa de marcar posição, algo de solene se perde. E o luto pede certa solenidade. “Apenas” porque a morte é o maior mistério, o único completamente impenetrável.>
Preta Gil foi uma artista generosa, intensa, com uma trajetória que rompeu barreiras e estabeleceu muitos afetos. Ela mesma se colocou a serviço de outras pessoas, se permitiu ser espelho e escada. Essa despedida provocou mobilizações reais, mas também serviu a outros usos sobre os quais acho importante refletir. É possível que a gente precise buscar um jeito mais elegante de lidar com perdas públicas, na era digital. Talvez, principalmente, tentando responder à seguinte pergunta: como homenagear alguém que se foi sem colocar essa pessoa a serviço da nossa própria história? Ou, então, assumimos - de vez e sem pudores - que, nesses tempos, tudo será cada vez mais sobre o “eu” e ponto final.>
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