Os desterrados da vida

Apesar de excessivamente digressivo e um tanto enfadonho, o romance de Sebald permaneceu em mim após a leitura

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  • Paulo Sales

Publicado em 13 de novembro de 2023 às 16:58

Em Austerlitz, o escritor alemão W. G. Sebald descreve a busca tardia de um homem taciturno e solitário por seu passado. O personagem que dá nome ao livro vagou por anos como um menino sem pais e um adolescente cujo nome verdadeiro lhe soava postiço. Já na maturidade, ele se lança nessa viagem rumo à própria semente. Uma viagem doída, mas imperiosa. Porque àquela altura sua existência se assemelhava à de um fantasma. “Até onde posso me lembrar, disse Austerlitz, eu sempre me senti como se não tivesse lugar na realidade.”

Ainda criança, aos 5 anos, Austerlitz foi separado dos pais pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Até então, vivia com a mãe e uma amiga dela em Praga, na República Tcheca, enquanto o pai estava em Paris. O garoto foi alijado do convívio de quem o amava para que pudesse sobreviver. Eram judeus. Após empreender a longa jornada que o levou até a Inglaterra, onde foi criado por um frio casal de religiosos, ele – aos poucos e de forma involuntária – apagou as lembranças de quem era. Tornou-se opaco, oco, esvaziado. Até que por fim se reconciliou com a sua história e uma chaga se abriu.

“De pouco me adiantava, claro, que eu tivesse descoberto as fontes do meu desassossego, que eu fosse capaz, após todos aqueles anos, de me ver com perfeita clareza como a criança afastada de um dia para o outro da vida que lhe era familiar: a razão nada podia com a sensação de rejeição e aniquilamento que eu sempre reprimira e que agora prorrompia de dentro de mim. Essa angústia me assaltava no meio das ações mais simples, ao amarrar os cordões do sapato, ao lavar a louça do chá ou ao aguardar que a água fervesse na chaleira”.

Austerlitz prossegue: “Eu sentia vontade de gritar, mas nenhum som me vinha aos lábios, eu queria sair à rua, mas não me mexia do lugar; certa vez, após uma longa e dolorosa contração, eu me vi de fato dilacerado por dentro e partes do meu corpo espalhadas por uma região sombria e distante”.

Apesar de excessivamente digressivo e um tanto enfadonho, o romance de Sebald permaneceu em mim após a leitura. Pensar na sina trágica do seu personagem me causa até hoje enorme sensação de dó. Rememoro e me compadeço com seu desamparo abissal, sua incompreensão do mundo. Imagino a que custo aquele garotinho conseguiu se adaptar a uma realidade sem afeto e sem laços, a ponto de precisar “deslembrar” os seus primeiros anos. Imagino a que custo sua mãe o mandou para longe com o valoroso intuito de salvá-lo.

Outro dia, um amigo que tem se enfronhado nos meandros da neurociência comentou comigo que o ativo mais valioso do nosso cérebro é a adaptabilidade. E concluiu: “Isso é também uma faca de dois gumes: adaptamo-nos a horrores. Viva em Gaza e ela lhe parecerá normal”. Essa observação me fez pensar nos tantos Austerlitz sem pai nem mãe na Gaza sitiada dos dias atuais. É evidente que me refiro aos que sobreviveram, já que as bombas israelenses foram especialmente cirúrgicas ao atingir crianças.

Em sua última crônica publicada neste jornal, a poeta Kátia Borges escreveu: “Busco no meu coração de FM um consolo, uma canção que me recolha do presente, dos pesadelos recorrentes com as imagens de crianças que tremem de medo dos bombardeios, com olhos de mil jardas. Olhos de mil jardas é uma expressão que se refere ao olhar abatido e vazio de quem presencia cenas de horror. Sua origem não se sabe ao certo. Mas começou a ser usada após a Primeira Guerra Mundial. Observar massacres públicos cotidianamente, talvez, nos condene à invenção de novos termos.

Será mesmo assim? Estamos condenados a presenciar indefinidamente a carnificina como motor da história? Essa combustão feita de sangue, esses seres desterrados da vida, apartados do tempo e do mundo civilizado. O nazismo não nos ensinou nada? Os gulags não nos ensinaram nada? As chacinas nas favelas do Brasil não nos ensinam nada? Quantos Austerlitz o século 22 conhecerá? Receio que nossos descendentes estarão fadados a também olhar o mundo com olhos de mil jardas, perplexos com a nossa inesgotável capacidade de destruir coisas belas.