Os outros florescem em nós

Através da memória, damos prosseguimento às sagas breves e prosaicas dos que vieram antes e ajudamos a perpetuá-las

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  • Paulo Sales

Publicado em 4 de setembro de 2023 às 05:00

Passeio com Pudim no parque e canto baixinho os versos de Tonada de Luna Llena, canção que sempre me emociona quando a ouço na voz de Luz Pinos, entoada à capela. “Yo vide una garza mora/Dándole combate a un río/Así es como se enamora /Tu corazón con el mío”. Já faz algum tempo que não vejo a garça branca que embeleza a lagoa com movimentos lentíssimos, como se praticasse tai-chi-chuan. Espero que ela volte em breve. Durante um período, houve mais de uma garça. Elas se lançavam às copas das árvores em graciosos voos de acasalamento.

Do outro lado da lagoa, uma amendoeira – e apenas ela – vive o seu outono particular em pleno final de inverno, lançando folhas amareladas na água enquanto as árvores ao redor permanecem verdes e viçosas. As cores outonais me encantam, talvez porque o ocaso sempre tenha estado em mim. Aprecio o tom que as folhas ganham quando começam a morrer ainda nas árvores, de um amarelo opaco pendendo para o vermelho vivo. Aprecio os céus tomados por nuvens, o vento frio que chega do oceano, a calmaria que vem depois da fúria.

Ao longo dos meus 53 anos, sempre fui assombrado por esse sentimento crepuscular, mesmo na minha distante primavera. Um fogo pálido que não aquece, mas no qual me aconchego. Hoje, cultivo um olhar mais sereno e reflexivo sobre a minha condição de ser humano. Contemplo o meu próprio envelhecer. Perdi algumas folhas e ganhei outras.

No próximo dia 10, completam-se 20 anos da morte do meu pai. É tempo suficiente para que um emaranhado de fibras, constituídas de tristeza, inconformismo e resignação, tenha recomposto a enorme clareira aberta em algum lugar do meu tórax, naquela noite de setembro de 2003. Mas, como sabem aqueles que se estorvam com suas perdas, esse emaranhado possui uma estrutura amorfa e irregular, feito a cicatriz de uma queimadura. Daí surgirem, aqui e ali, fendas por onde escapam a saudade e o luto. É quando nos damos conta do tamanho da nossa orfandade.

Ele teria 88 anos. Tento imaginar sua fisionomia tranquila caso estivesse vivo e penso no quanto poderíamos celebrar juntos. O sentimento de vazio permanece íntegro, embora ligeiramente esmaecido. Para mitigá-lo, me atenho às lembranças: sua voz, seu rosto, seu jeito introspectivo, seu porte elegante, seus xingamentos quando o Flamengo perdia. Por vezes me impressiona como involuntariamente me converto em um espelho dele. O cruzar de pernas, o olhar contemplativo para a rua, a taça de vinho displicente na mão, a necessidade por vezes imperiosa de silêncio.

Meu pai morreu decentemente em sua cama. Eu fechei seus olhos. Como é fácil fechar os olhos de um morto. “Não se deve esquecer de nada”, escreve Philip Roth ao final de Patrimônio, seu melhor livro, que fala justamente da convivência com o próprio pai idoso e gravemente enfermo. Roth está certo. Pode soar mórbido guardar recordações como a que descrevi acima. Mas eu não quero esquecer. Porque se o epílogo foi triste, o resto não foi. Talvez tenha ficado a sensação de não ter sido mais explícito na demonstração do meu amor. Ou talvez nem precisasse: ambos tínhamos plena consciência dele.

Nos lugares onde há invernos rigorosos, as árvores se despem totalmente das suas folhas. Restam os galhos, que nem ossos sem carne. O frio parece avesso ao desabrochar da vida, e mesmo os animais somem. Mas em seguida há o degelo e com ele a primavera. Ao contrário de nós, quando reduzidos ao esqueleto, as árvores voltam à vida e adquirem uma vibrante coloração juvenil. É pena que por aqui esse espetáculo seja tão raro.

Pensando bem, é possível que nós, bichos que pensam, tenhamos nosso próprio ciclo das estações. Ele se dá através da memória de quem fica. Com ela, damos prosseguimento às sagas breves e prosaicas dos que vieram antes e ajudamos a perpetuá-las. Seja nos sonhos, nos objetos, nos retratos que guardamos ou mesmo numa frase, gesto ou entonação de voz que imitamos inconscientemente. É assim que os outros voltam a florescer em nós.