Pequenos milagres do acaso

Gosto de pensar na nossa unicidade, no fato de sermos a única nação das Américas a verbalizar em coro a última flor do Lácio, inculta e bela

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  • Paulo Sales

Publicado em 13 de maio de 2024 às 05:00

Entre tantos flagrantes devastadores que acompanhamos nos últimos dias sobre a catástrofe no Rio Grande do Sul, uma cena me comoveu particularmente: a de centenas de porcos e vacas mortos na margem de uma estrada. Vulneráveis feito crianças pequenas, eles não souberam o que fazer quando a água em profusão invadiu o seu mundo e os destituiu da terra firme. Foi só mais uma dura sequência dessa distopia que se materializa a cada ano, com seu festival de horrores habitual: casas, ruas e bairros desaparecendo em minutos e mortos surgindo em escala semelhante à de grandes hecatombes. Fomos poupados de terremotos e vulcões, mas não das tragédias anunciadas.

Monótonas e reincidentes, as imagens da enchente parecem cenas de arquivo das emissoras de tevê, revivendo um espetáculo de som e fúria que não significa nada além de sofrimento e incompreensão. Contabilizamos nossos prejuízos, choramos nossos mortos, festejamos nossos sobreviventes e não identificamos nossos culpados. Nossa jornada é a dos errantes, que esquecem o passado para tentar prosseguir. Calando a dor, escondendo as lágrimas e caminhando inapelavelmente rumo a lugar nenhum.

Ver Porto Alegre tomada pela água provocou em mim um misto de incredulidade e desalento. Já caminhei muito por aquelas ruas: estive na Casa de Cultura Mario Quintana, comprei discos no Brique da Redenção, passeei na orla do Guaíba. Guardo enorme carinho por esse estado, que me acolheu tão bem nos meus 20 anos e onde fiz amizades sólidas. Viajei de carona por aquelas estradas serranas, agora dizimadas pela enxurrada, e devo muito aos dias que passei lá, por tantas descobertas, experiências e arrebatamentos.

Talvez essa calamidade num ponto extremo do Brasil pudesse representar o momento de nos reencontrarmos com nossa essência de país, perdida nos últimos anos para o extremismo mais abjeto. Afinal, hoje ao menos há quem se compadeça com a tragédia e tente mitigá-la, ao invés de navegar de jetski sobre a desgraça alheia. Mas sei que é uma esperança vã. Alguma coisa ficou definitivamente para trás, fraturada, retorcida. Essa capacidade que um dia tivemos de nos reconhecer como povo de um lugar, com todas as nossas peculiaridades: sotaques, costumes, sabores, comportamentos e fisionomias.

Mesmo deplorando o conceito de patriotismo, tão postiço em sua grandiloquência, gosto de pensar na nossa unicidade, no fato de sermos a única nação das Américas a verbalizar em coro a última flor do Lácio, inculta e bela. Flor impura que nos deu Hatoum em um extremo do território e Verissimo no outro. E que estranhamos tanto quando expressada na sua origem pelas ladeiras de Lisboa. Assim como baianos estranham o dialeto catarinense e vice-versa, ou como as sílabas engolidas dos mineiros soam deliciosamente incompreensíveis para o resto do país. O nosso país.

Mas – e aqui já enveredo por um terreno bem mais difuso – que país é o nosso senão este maciço maltratado de pedra e água que viaja no nada? Com isso, quero dizer que nossa unicidade não se limita a um país, mas engloba todo o planeta. Para além das fronteiras e muros que apartam nações e isolam povos, somos em verdade a Pangeia original que não chegamos a conhecer: o continente único que existiu há 230 milhões de anos. Em vez do nosso litoral, teríamos a África como vizinha. Talvez assim fosse mais fácil enxergar o mundo (e o outro) como um só, esse monstro de espanto e comoção que nos assombra e nos divide.

A morte de uma adolescente arrastada pela lama no Rio Grande do Sul me dói como a de um ancião sob escombros na Gaza sitiada ou de uma criança vencida pela malária no interior do Congo. O fim de cada um deles abre uma imensa clareira, deixando à mostra nossa insignificância coletiva e, paradoxalmente, nossa inestimável riqueza individual. O valor pleno de existir e a dor de findar, que Brecht definiu tão bem em um poema juvenil: “Numa noite fria, nessa terra crua/Cada qual leva a morte que é sua/Cada homem certamente amou a vida/Coberto por palmos de terra batida.”

Vidas são pequenos milagres do acaso, mesmo aquelas em tese primitivas, como as que jaziam numa estrada do sul, impossibilitadas de entender o que fazem aqui ou por que vivem e morrem – nós por acaso entendemos? Somos todos testemunhas de um enigma infindável: caminhamos atônitos diante da própria brevidade, deixando pegadas no solo do tempo que de qualquer forma serão apagadas. Seria louvável, portanto, se aprendêssemos alguma coisa com o fato de não sabermos nada.