Acesse sua conta
Ainda não é assinante?
Ao continuar, você concorda com a nossa Política de Privacidade
ou
Entre com o Google
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Recuperar senha
Preencha o campo abaixo com seu email.

Já tem uma conta? Entre
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Dados não encontrados!
Você ainda não é nosso assinante!
Mas é facil resolver isso, clique abaixo e veja como fazer parte da comunidade Correio *
ASSINE

Tantos anos antes

Seria eu feito de chamas que não se consomem, guiando a mim mesmo na direção de um êxodo improvável, impelido por memória e esquecimento? De onde vem essa chaga invisível que carrego?

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 6 de julho de 2025 às 05:00

Ouço Astor Piazzolla na penumbra da varanda, nesta noite amena de inverno. É uma peça menos conhecida dele, chamada Tanti Anni Prima, numa versão interpretada pelo violinista letão Gidon Kremer. Eu a ouvia com frequência em outra gravação, ao piano e bandoneon, quando morava em São Paulo, já se vão 30 anos. Ainda tenho o CD do mestre portenho que comprei lá. Em português, a frase italiana “tanti anni prima” significa “tantos anos antes”. Faz todo sentido. A música me projeta de volta ao passado feito uma avalanche.

Estou só em casa. Ou melhor: estou com meu pequeno filho peludo, que me faz companhia deitado na cadeira ao lado. Bebo um vinho tinto e penso em meu pai, que tantas vezes vi nessa mesma posição em que estou: pernas cruzadas, taça na mão, ouvindo música alta e contemplando o vazio da noite numa outra varanda, numa outra era. No que ele pensava? No seu próprio pai, que em tempos ainda mais remotos fizera o mesmo em alguma varanda esquecida? Na sua mocidade, hoje um papel borrado com letra ilegível? Ou apenas divagava sem rumo, flanando mentalmente como faço agora?

Gostaria que ele estivesse aqui ao meu lado. Que lhe fosse possível transpor o abismo dos quase 22 anos que nos separam. Fazíamos muito isso: compartilhar vinhos e silêncios. Ele vivia envolto em seus próprios mundos, como eu, e ambos navegávamos sob neblina espessa. Sinto enorme saudade desses silêncios. Nós, os ensimesmados, somos assim: alheios, refratários, inóspitos, repletos de pequenos tsunamis interiores que permanecem represados. Em nossas solidões estanques, fazíamos companhia um ao outro.

Os temas de Piazzolla se sucedem enquanto escrevo: Adiós, Nonino, Oblivion, Libertango, Años de Soledade. Adélia Prado certa vez escreveu: “As moitas onde existo são pura sarça ardente de memória”. Ela se refere a uma passagem bíblica do Livro do Êxodo, na qual Deus se mostra a Moisés através de um arbusto em chamas que não se apagam. Desse encontro, Moisés saiu para libertar os hebreus e conduzi-los à Terra Prometida. O que Adélia quis dizer com “sarça ardente de memória”? Provavelmente que ela é feita de reminiscências. São sua essência, seu âmago, e nunca se extinguem.

No mesmo poema, chamado As Mortes Sucessivas, ela escreveu: “Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei / Busquei retratos antigos, procurei conhecidos, / parentes, que me lembrassem sua fala, / seu modo de apertar os lábios e ter certeza. / Reproduzi o encolhido do seu corpo / em seu último sono e repeti as palavras / que ele disse quando toquei seus pés: / ‘deixa, tá bom assim’. / Quem me consolará desta lembrança?”

Seria eu feito de chamas que não se consomem, guiando a mim mesmo na direção de um êxodo improvável, impelido por memória e esquecimento? De onde vem essa chaga invisível que carrego? Dos sonhos, de um tempo sem tempo, de uma vida que não é minha? Das lembranças de quem já foi eu dou conta. Mas quem me consolará das perdas que estão por vir? Tantos anos antes, tantos anos depois. Olhos que se fecham ao mundo exterior e não me veem. Não existe nostalgia no futuro.

Como Piazzolla volta ao sul, eu volto ao passado. Regresso à casa cheia, aos almoços em família, à comida pesada e reconfortante: feijão com fato, carne de porco, dobradinha, feijão fradinho com moqueca de carne, malassado com torresmo. Regresso ao veraneio na praia, ao futebol na areia, à liberdade concedida na adolescência, após a superproteção na infância. Regresso ao apartamento que parece ter aumentado de tamanho, ao quarto com três camas pouco a pouco desocupadas. Aos olhos de meu pai que eu mesmo fechei.

Ao meu lado, meu filho peludo cobra atenção. Levanto da cadeira e o carrego para olhar a rua, o que ele adora. Gosto quando se aninha em meu peito e põe a cabecinha em meu braço para observar os carros, motos e pessoas. Sinto seu corpo quente pulsando nas minhas mãos e penso no quanto ele me faz bem. Compartilhamos nossos silêncios, cada um envolto em seus próprios mundos. E chego à conclusão de que, a despeito das perdas, saudades e desencantos, sou um homem quase feliz.