Quando vocês se decepcionam com um "líder religioso", eu penso: que bom!

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  • Da Redação

Publicado em 15 de abril de 2023 às 09:17

- Atualizado há um ano

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Continuo sentada aqui, igual a Zefinha: na minha cadeira de balanço, com as pernas cruzadas, sacudindo o pé e dizendo "ai, ai". Isso, derne antes de o "pai de santo" (dos outros, não meu) inventar que os "filhos" tinham que mexer na piroca dele pra ganhar iluminação. Derne antes de saber dos casos de pedofilia nos porões da Santa Igreja Católica. Derne antes de conhecer os métodos de extorsão de "pastores". Derne até muito antes de João de Deus virar João do Cão e de o Dalai Lama pedir pro menino chupar a língua dele. 

Agora eu li Leonardo Boff defendendo que o Dalai Lama é só "brincalhão" e sacudi meu pé mais ainda. Tanto errou - e sabe disso - que pediu perdão. Todos erramos. O erro - em diferentes níveis - é, também, o que devemos esperar de humanos. Tão natural quanto o acerto. Alguns imperdoáveis. Outros podem ser reparados. Ao contrário do que diz aquele filósofo contemporâneo popular, penso que nossos erros também nos definem. Se, por um lado, nenhum de nós está condenado à repetição de determinado erro, o fato de errar ser inevitável faz parte da nossa humanidade. Podemos até inovar no conteúdo, não repetir o mesmo erro. Mas vamos seguir errando. Todos. Sem exceção.

Por essas e outras, Mainha sempre me preveniu que esse negócio de "ficar encegueirada" seja por artista, professor, padre, pastor, professor de ginástica, político ou que diabo for, não presta. Depois, eu soube que a mãe de minha amiga, que estudava em colégio religioso, aconselhava "nada de intimidade com freira, se perguntar muito de sua vida, minta!". Se vocês não são filhos de Mainha - nem da mãe de minha amiga - é porque não tiveram sorte. Quem recebeu esses conselhos na infância é privilegiado, sim.

Gostar de religião e "rituais espirituais" é uma coisa. Cada um é que sabe das ajudas que precisa pra andar na vida. Cada vivente conhece o próprio vazio. Uns vão pra a maçonaria, outros para a igreja. Tem gente que não dá um passo sem consultar o tarô, os búzios, a "sensitiva" ou a bíblia. Cada um simboliza e lida com o "oculto" à sua maneira. Soprando canela, repetindo mantra, indo pra missa, fazendo oferenda. Tem gente que não faz nada disso e tudo ótimo também. Não tem um jeito melhor que o outro. Tudo diz do nosso desamparo, tudo é nossa pergunta. É tudo do humano.

Só há dois problemas. Um é quando alguém acha que a sua própria maneira de lidar com o oculto é a única que deve valer e tenta e submeter o outro à própria crença. O segundo problema é quando se passa a crer que a resposta do "mistério", a "conexão com o mágico" está encarnada em outro humano. Pronto. Junta uma coisa com a outra e a desgraça tá feita. Basta observar a história da humanidade e você vai ver que tudo - tudo! - de trágico que vem da religiosidade só tem como acontecer porque, na base, está um desses dois erros. Frequentemente, ambos.

É por isso que quando vocês se decepcionam com um "líder religioso", eu penso: que bom! Acho saudável. Por exemplo: muito mais estranha eu achava aquela idolatria em torno do tal João, em Abadiânia, do que a descoberta e denúncia dos crimes cometidos por ele. Quando os crimes apareceram, tudo fez mais sentido, pra mim. Ah, sim! João é só um humano! Nesse caso, escroto, criminoso, ruim, perverso, asqueroso. Isso existe, é deste mundo, reconheço. O "santo" que anunciavam, antes, é que eu não conseguia reconhecer, por mais que muita gente - em quem confio, inclusive - acreditasse naquilo.

Entendo. É muito difícil conviver com o fato de que não sabemos. Não sabemos o jeito certo, não sabemos o que tem "do lado de lá", não sabemos se há o "lado de lá". Não sabemos sequer o que é pra fazer aqui, nem o que significa "aqui". Erráticos, vamos criando enredos, rituais, éticas, modos e costumes. Vamos tentando dar sentido. Inventando jeitos de amar, motivos pra brigar, escrevendo regras e, quando tudo que conhecemos - e inventamos - nos falta, nos voltamos para o "mistério". 

Só que mistério é mistério. Desafiador, frustrante, trabalhoso. Mistério é qualquer coisa, menos resposta. Diante disso, o que a gente pensa? "Não aceito, alguém vai ter que me responder". Genial, né? Só que não. Aí é que lascou. Porque - além das infinitas interpretações produzidas pela humanidade - desde sempre não faltam humanos que digam "eu sei mexer com esse negócio, tenho ligação direta, tenho poder, eu sei o que você deve fazer, venha atrás de mim". E nunca faltaram encegueirados seguidores. De humanos. Tão falhos quanto qualquer um de nós.

Gosto mesmo é de neurociência, filosofia e psicanálise. Mas compreendo demais que tanta gente - principalmente em países onde as questões sociais são mais problemáticas - busque a religiosidade. Normal. Só que as pessoas que mediam os caminhos - inclusive os religiosos - são, quando muito, apenas instrumentos em nossas tentativas de compreensão. Organizadoras de certos conhecimentos, teorias e possibilidades. Pode ser bom consultá-las, ouvi-las, a depender do caso. Mas é só isso. No máximo.

Essas pessoas não são o mistério. Sequer o caminho. Muito menos atalhos. Nenhuma delas. O que têm também são perguntas. Inclusive, muito mais frequentemente do que alguma "iluminação", alcançam é o humaníssimo deslumbramento diante do poder que lhes dão. E fazem merda. De diversos portes e qualidades. Quanto mais "adorado", mais autorizado o humano pode se sentir a desrespeitar limites éticos, combinados aqui na Terra, para a convivência minimamente civilizada. Protegido sob a capa da idolatria, tem até mais chances de cometer absurdos do que eu e você, meros mortais.

"Grandes coisas" eu, você, o pastor, o padre, o pai de santo, o Dalai Lama, o professor de ioga, o guia da meditação, o "mestre" de qualquer coisa que se inventar. Ninguém tem a resposta, entenda. Cada um - inclusive os "guias" - precisa dar conta do próprio vazio. O que temos são tentativas disponíveis para todos. Apenas buscas - mais ou menos bonitas, mais ou menos inclusivas, mais ou menos convincentes, mais ou menos poéticas - de respostas, conforto e "salvação". 

O budismo tibetano é bonito. Lindo! Mas não salva, da mais rasteira humanidade, nem seu maior líder que - por traço cultural, senilidade, ruindade ou seja o que for - assediou uma criança diante de todo mundo e desequilibrou quem o achava "santo". Humano. Nenhuma doutrina garante salvação. Mas, talvez, ao falharem, todas elas cumpram importantíssima missão: exatamente pelos erros de seus representantes, nos mostrar que ninguém é perfeito o suficiente para ser farol, guia ou modelo de outro alguém. Exemplos não nos faltam, para quem ainda precisa entender. Cada um dá o que tem. Ninguém tem tudo. Ponto.

Então, nenhum líder espiritual presta? Alguns prestam, outros não. Igual a qualquer ambiente onde se reúna gente, há os maus e os bons. Alguns são inteligentes, outros burros. Há os medianos. Alguns são honestos e tentam fazer o bem. Também há os bandidos. Tem de tudo, igual na feira. Mas "santo" não tem não. Nunca teve nem nunca terá. Agora, o inimigo existe e tá aí fazendo desordem. Responde por nomes como idolatria, veneração e bajulação. Então, em verdade vos digo: vigia seus pensamentos, crenças e fé, meu irmão.