Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Priscila Natividade
Publicado em 29 de março de 2024 às 08:00
O ritmo que se cria aqui, aquele negócio que balança o corpo todo, é mais que um som que pulsa na batucada ou uma partitura. Ele transforma. Do Parque do Queimado, passando pelo Pelourinho até o Candeal, trouxemos de lá 10 relatos de quem viu esse som, inspirar e transpirar oportunidades. Histórias que saíram de projetos sociais que todo dia dão régua, compasso e conhecimento a crianças e adolescentes, hoje músicos profissionais que levam a Bahia em cada palco onde chegam. Desde o menino que bateu lata com Gilmelândia no Programa da Xuxa e hoje é percussionista da cantora Ivete Sangalo, até a violista que saiu de Paripe e se tornou a primeira baiana da Academia da Filarmônica de Berlim, veja a seguir como, na vida e na arte, a música é capaz de mudar tudo.
"Eu sempre tive o interesse pela música, pois cresci frequentando a igreja com a minha família e lá eu cantava em um coral. Sou filha de um pai analfabeto, que, infelizmente, não teve as oportunidades que os jovens de hoje têm. Estudei sempre em escola pública, mas agarrei todas as chances que apareceram para mim através dos projetos sociais de que participei. Eu fui uma das primeiras integrantes do Neojibá. Vi a transformação através da música na vida das crianças e jovens que não têm perspectiva de vida. É bom demais ter nascido em Salvador. Um lugar onde estamos todo tempo sonorizados com nossos ritmos, o jeito cantante de falar, de dançar e nos mover. Participei de turnês, onde levamos para várias partes do mundo a nossa cultura. Vim do subúrbio, do bairro de Paripe. Me sinto muito privilegiada em ter sido a única baiana a participar da Academia da Filarmônica de Berlim. Toco viola erudita, sou fluente em quatro idiomas e hoje moro num país com uma cultura completamente diferente da nossa. Fiz academia em uma das melhores orquestras do mundo, um bacharelado na Universidade de Frankfurt de Música e Artes Cênicas e agora estou terminando meu mestrado na classe da violista e professora, reconhecida internacionalmente, Ingrid Zur. Isso tudo eu conquistei porque a música existe na minha vida".
Geisa Santos é violista e tem 35 anos. É uma das monitoras fundadoras do Neojibá. Saiu do projeto em 2013, quando ganhou uma bolsa para estudar na Academia da Filarmônica de Berlim, na Alemanha, onde se tornou a única baiana a fazer parte da academia.
"Faço parte da Didá a minha vida toda. Sou uma das multiplicadoras do samba-reggae e do que meu avô, Neguinho do Samba, ensinou. Para além de uma banda, a Didá é uma escola de vida. A música tira muitos jovens, crianças e mulheres da margem da sociedade, trazendo oportunidades que talvez em outro lugar eles jamais tenham. O nosso projeto tem curso de percussão, dança, capoeira e teatro. Em 30 anos de história e muita resistência, mais de 2 mil crianças, jovens, mulheres já passaram pela Didá. As aulas são gratuitas, é só chegar na escola e fazer a inscrição. Eu fico impressionada com o poder de transformação da música. O som de Salvador consegue transformar, renovar, modificar tudo e todos ao seu redor de uma forma maravilhosa e única. Eu digo isso, não só porque meu avô criou o samba reggae e enxergou a necessidade de inserir as mulheres no mundo da música quando fundou a Didá, mas também, ao ver Beyoncé se interessar pelo som da negritude, dos nossos ancestrais, quando a Renaissance World Tour passou de surpresa em Salvador. É muito importante ser reconhecida, vista e ouvida por uma grande mulher do mundo da música, engrandecendo o nosso trabalho. Foi surreal para todas nós".
Carla Souza tem 22 anos e faz parte da Didá desde que nasceu. É uma das diretoras da banda e neta do mestre Neguinho do Samba - criador do Samba-Reggae e da primeira banda percussiva feminina de Samba-Reggae do mundo.
"Nasci no Candeal em 1982 e comecei a ter contato com a música com 7 anos, em uma banda composta por sete meninos - eu, Jair, Sinho, Marquinhos, Paulinho e tinha mais dois outros também. Éramos a Banda Arrastão, uma banda de lata. A conexão começou a partir daí. A gente pulava o muro das obras da OAS para pegar tinta de lata vazia que ia ser jogada fora e transformava em instrumento. Vim da percussão de rua. A Pracatum surgiu e foi algo novo construído por Brown que abriu portas para nossa carreira profissional. Viajei o mundo, tive oportunidade de tocar em vários palcos mundiais como Montreux, Jazz Festival, Nice Festival, Hollywood Bowl e por aí vai. O som de Salvador para mim é conexão com ancestrais. Sentir paz, amor, fé, cura. A música que sai dos tambores é nossa. Ela foi capaz de melhorar minha vida pessoal, minha educação. Melhorei a moradia da minha mãe, pude construir uma família, ter minha casa, proporcionar uma educação de qualidade para meu filho. A música é o combustível que me mantém de pé. Eu me renovo e reforço sempre a minha fé e a força para encarar o dia a dia. Além de ser um dos idealizadores do Projeto Roda de Timbal que acontece no Candeal, eu tive uma realização profissional gigantesca: tocar com Ivete Ver. Ver o quanto os meus estudos, pesquisas e investimentos me levaram a este lugar é simplesmente perceber que todas as minhas batalhas deram certo".
Elbermário Rodrigues, 41 anos. Percussionista profissional foi um dos primeiros alunos da Escola de Música Pracatum. Um dos idealizadores do projeto Roda de Timbau, que acontece todo mês no Candeal - lugar de Salvador onde foi nascido criado e começou tocando lata – Elbermário é hoje um dos músicos da banda da cantora Ivete Sangalo.
"Desde pequeno, minha mãe sempre me levava para os ensaios dos blocos afros e para as festas de candomblé, onde o que sempre me chamava mais atenção eram os cânticos e os toques de atabaque. Como na época eu morava em Itapuã, o primeiro bloco afro com que tive contato e toquei um instrumento pela primeira vez foi o Malê de Balê, no qual fiz parte da banda Mirim (Malezinho), durante 4 anos. Em 2012, começou a minha história no Ilê Aiyê que me mostrou um leque de opções na musicalidade, despertou sonhos, me fez descobrir meu dom. Me tornei um músico e cantor de bloco afro. Ter sido escolhido para cantar o tema do carnaval desse ano em homenagem aos 50 anos de Ilê Aiyê, me deu a chance de abrilhantar a avenida enaltecendo as Bodas de Ouro do bloco. Música é esperança de vida para quem a escolhe, tendo a responsabilidade de transmitir a mensagem e passar emoção por onde quer que vá. A música me levou a caminhos inimagináveis para mim. Eu, como morador de periferia, cantar transmutou algo dentro da minha realidade. Acho que Salvador é uma cidade com uma diversidade rítmica e plural, mas é a musicalidade oriunda dos terreiros de candomblé e da identidade dos blocos afros que reporta toda a essência e originalidade de Salvador. Hoje, como uma das cinco vozes do Ilê Aiyê, a música me ensina todos os dias uma lição de vida, uma mensagem de positividade. Me mostra que não podemos desistir do que queremos conquistar".
Valter França, 26 anos, é uma das vozes da Banda do Bloco Afro Ilê Ayê. Também é professor de percussão do projeto Awa Musicalidade Ancestral. Foi nos terreiros e nas festas de candomblé em meio aos cânticos e toques do atabaque que ele descobriu que a música era essência e identidade.
"A cada dia, a música realiza o sonho da minha criança. Toco todos os instrumentos percussivos, porém, a minha paixão é mesmo o timbau. Sou uma percussionista e multi-instrumentista cujo amor pela música foi semeado pelo meu pai, Zidane, que também era percussionista e continua a inspirar minha jornada musical. Com cada batida do tambor quero inspirar outras pessoas a encontrarem sua própria voz musical e a se conectarem através dos ritmos envolventes que ela cria. Desenvolvi uma paixão pela percussão que está me levando a explorar o mundo sonoro de maneira única. Fiz aula de inglês e pandeiro. No momento, estudo percussão sinfônica. Através da Pracatum e da Associação Lactomia Ação Social (Alas) muitas portas se abriram para mim: durante o II Festival internacional de Percussão, toquei ao lado do mestre do tambor falante do Senegal, na África Ocidental, Massamba Diop. Conheci outros estados, toquei ao lado de artistas renomados como Carlinhos Brown, Saulo Fernandes, Timbaladies e hoje toco na banda Àttooxxá. Só Salvador é capaz de transmitir o som do amor, do coração, o som da coletividade. A minha jornada na vida percussiva é uma história de paixão, determinação e amor pela música. Ela é essa força poderosa".
Alana Oliveira, tem 17 anos. Multi-instrumentista, toca todos os instrumentos percussivos. Já tocou ao lado de artistas renomados, como Carlinhos Brown, Saulo Fernandes e na Timbaladies e hoje faz parte da banda Àttooxxá.
"Quando criança, tive contato pela primeira vez com um violino assistindo a um casamento. Queria tocá-lo de qualquer jeito. Coincidência ou não, um amigo da família havia comprado um violino para sua filha e ela não quis. Então, ele doou para mim. Fiquei um bom tempo apenas ‘brincando’ com o violino. Não tinha dinheiro para pagar um professor até que minha mãe soube que havia um projeto que dava aulas gratuitas. Entrei no Neoijibá e dentro do programa tive acesso a professores, maestros e amigos. Desde então, continuo a estudar música. Durante a pandemia, vivi um momento de tensão após um crescimento repentino de um cisto na mão que atrapalhava os movimentos para tocar. Parei com o violino e a partir daí que comecei a estudar regência com mais profundidade e se tornou minha paixão. O meu primeiro ‘empurrãozinho’ foi ser regida pela maestrina Lígia Amadio na Orquestra 2 de Julho. No meio do concerto, enquanto a música tocava, ela olhou dentro dos meus olhos e deu um sorriso para mim. Então, eu - que na época era um pouco insegura - decidi que posso ser assim como ela e conduzir a orquestra também. O que começou com uma curiosidade tem me levado ao objetivo de me tornar uma maestrina profissional. Reger é um momento em que podemos expressar e passar nossos sentimentos sem usar palavras. Sonho me tornar professora de regência e dar master class para futuros maestros. Hoje escrevo projetos envolvendo música de câmara com apenas musicistas mulheres com o intuito de incentivá-las a continuar e progredir seus caminhos musicais, além de fomentar composições femininas no ramo da música clássica que ainda é escassa".
Bruna Dantas, 22 anos, maestrina. Atualmente é professora de violino e regente assistente na Neojibá. Também cursa Bacharelado em Instrumento Violino na Universidade Federal da Bahia (UFBA), além de escrever projetos envolvendo música de câmara com apenas musicistas mulheres.
“Na verdade, comecei minha carreira como dançarino do projeto social. Na época, deveria ter uns 18 anos. Minha avó Lúcia Rosa dos Santos era sambadeira. O fato de ter ao meu redor as casas de candomblé, o próprio samba de roda, novenas, quermesses, carnaval, me deu régua e compasso. Sou do Engenho Velho de Brotas e entrei para Funceb em 1987, mesma época em que a escola tinha um projeto de música para ser tocada nas aulas de dança afro, ministrada por professores como King, Edileuza, Augusto Omolu. Para mim foi desafiador trabalhar com tantos ritmos. Comecei a estudar e hoje me tornei músico-educador da Funceb, onde faço parte do quadro há 36 anos. Além disso, sou pesquisador da cultura popular regional brasileira e da cultura de matrizes africana e também é compositor de trilhas sonoras para peças de teatro e dança de matrizes africana, entre elas, o Balé do Teatro Castro Alves. A música é uma das maiores ferramentas para transformar pessoas. Pude conhecer 38 países, fazer intercâmbios internacionais nos Estados Unidos e Europa, conhecer culturas de quase o mundo inteiro, trocar conhecimentos com os jovens que não têm acesso. Mostrar que a percussão daqui tem seu valor, igual a qualquer instrumento de origem eurocêntrica. A arte de poder tocar um tambor e se relacionar com a ancestralidade abre novas possibilidades, no sentido mais amplo da vida, se torna extensão da nossa alma".
Bira Monteiro é percussionista, educador, pesquisador da cultura popular regional brasileira e da cultura de matrizes africana. Trabalha como músico oficial do cantor Lazzo Matumbi. Também é compositor de trilhas sonoras para peças de teatro e dança de matrizes africana. Bira faz parte do quadro de músico educador da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) há 36 anos.
"Primeiro, eu quero dizer que Salvador é meu lugar no mundo. O lugar de uma riqueza imensa, a gente não tem noção disso. E eu cresci vendo todo o movimento cultural, artístico, aqui na comunidade do Candeal. Minha avó e minha mãe até falam que era coisa desde a barriga. Vendo Carlinhos Brown fazer música, os shows da Timbalada, cada um dos músicos daqui e de outros lugares circulando, tudo pela arte. Isso foi mais que o suficiente para eu me encantar e me interessar por música. Já em contato com todo esse movimento, fui começando a participar das atividades muito novo e a Pracatum foi a minha primeira academia. Tinha uns 7 anos quando comecei a fazer os cursos de capoeira, violão, canto coral, inglês. Daí parti para a percussão. Devido à música, eu já vivenciei muita coisa que eu não imaginava. Até mais que os próprios sonhos. Conheci diversos lugares no mundo, conheci vários países, participei de festivais nacionais e internacionais. São muitas conquistas, coisas que vivi pela música, através da música. Conheci muitas pessoas, grandes artistas não só no Brasil como em outros países também. Trabalhei com Carlinhos Brown, Saulo, Zeca Baleiro, Teresa Cristina, Fran Gil, Silva e outros artistas, além da Orquestra Binacional (Brasil e Venezuela). A última vivência que tive foi na Europa. Passei a temporada de verão lá e desenvolvi alguns trabalhos e isso me acrescentou muito. Atualmente, eu sigo trabalhando com gravações, algumas produções musicais, além dos eventos que a gente faz e sempre está nos palcos. O som que só Salvador é capaz de produzir é que sai dos tambores da rua. Você andar pelo Candeal e ouvir o timbau, a bacurinha, o surdo virado. Ir à Senzala do Barro Preto, no Curuzu, e reconhecer o repique. Chegar no Pelourinho, ouvir de longe o berimbau, o caxixi, o atabaque, a capoeira com o couro, as ladainhas. Isso só em Salvador".
Rian Mourthé, 27 anos. É percussionista nascido e criado no Cadeal e também um dos idealizadores do projeto Roda de Timbau, junto com Elbermário Rodrigues e Gaby Silva. Está sempre nos palcos tocando com artistas como Carlinhos Brown, Saulo, Zeca Baleiro, Teresa Cristina, Fran Gil e Silva.
"Eu sou uma mulher negra, lésbica e suburbana. Venho de uma família humilde de músicos e ferroviários. Meu avô, além de músico, era ferroviário e trabalhava na antiga CBTU. Meu interesse por música surgiu na infância vendo o meu avô tocar, então comecei a tocar cavaquinho. Ele foi me ensinando a tocar aos poucos e ali comecei a ter uma percepção musical. Depois comecei a aprender percussão, quando entrei no instituto Ara Ketu, onde passei 10 anos estudando e lá conheci outros músicos. Meu interesse pela área musical só fez crescer. Também fiz parte da Filarmônica de Frevos e Dobrados e dos cursos livres de música da UFBA, onde aprendi a tocar sax alto. Através das vivências nesses projetos, passei a tocar - muito de forma autoditada - violão e bateria. Quando tinha 9 anos, subi no palco do Festival de verão, onde toquei com o Grupo Rouge. Muitas alegrias, momentos engraçados e curiosos aconteceram nesses meus mais de 20 anos de música. Lembro que foi uma alegria imensa subir em um palco pela primeira vez na vida. Perdi as contas da grande quantidade de pessoas que já conheci, os lugares que já viajei e os palcos que já toquei. A música é o ar que respiro. Me fez sonhar em um futuro melhor para mim e para a minha família. Eu pude gravar em estúdios que jamais imaginaria entrar, acessar espaços que não conseguiria se não fosse através da minha arte. No carnaval, toquei bateria com a banda da cartista Majur e atualmente estou me dedicando mais a Banda Panteras Negras, onde atuo como diretora musical e musicista. Também continuo tocando em alguns projetos musicais independentes".
Aline Santana é musicista tem 34 anos, pesquisadora musical e professora de percussão e bateria. Participou das bandas Verona's, Domix e Timbaladies. No carnaval, tocou bateria com a artista Majur. Atualmente atua como diretora musical e musicista da banda Panteras Negras.
“Já fazia música com garfo, panela, vasilha plástica que tinha na cozinha de casa. Meu pai era compositor e as primeiras pessoas que ele mostrava as canções eram para mim, minha mãe e a família, né? E era aquele negócio de conexão pai e filho de que eu gostava muito. Foi daí que veio a influência para que eu desse o primeiro passo em direção à música. Comecei no Quabales, no Nordeste de Amaralina, aos 8 anos, como cantor. Com o grupo, fui para Miami, Suíça, subi no palco do Rock in Rio, grandes coisas até hoje. A música é essencial para todo mundo. Triste, feliz, a gente ouve música. O som grave pega valendo no coração, o agudo, médio, aquela vibração, a energia. A música também traz conexão com as pessoas, intercâmbio com artistas, desenvolvimento, o conhecimento de ver as coisas com outros olhos. Uma coisa que eu sei, que eu vivencio muito, é que aqui é muito misturado. A gente gosta de misturar som, a batida, a levada. Um ijexá, misturado com merengue, samba e aí sai aquele swing, aquele negócio que balança o corpo. Acho que Salvador é isso. Faço parte do grupo Quabales, a gente joga o balde para cima, lata tudo. Hoje também trabalho na Cidade da Música na Bahia mostrando todo esse conhecimento que venho adquirindo até aqui. É bom ver no museu, o quanto a galera gosta de ver quem faz a música daqui”.
Vamarlei José, 20 anos. É cantor do Grupo Quabales e também toca bacurinha. Trabalha no museu Cidade da Música fazendo workshop para visitantes e turistas.
O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.