Orquestras mesclam erudito, afro e pop e dão um toque diferente à cena musical de Salvador

Músicos do Neojiba, Osba e Rumpilezz comentam a mistura de gêneros

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  • Tharsila Prates

Publicado em 29 de março de 2024 às 11:00

Ensaio do Neojiba no Parque do Queimado
Ensaio do Neojiba no Parque do Queimado Crédito: Marina Silva/ CORREIO

Uma das mais ilustres casas de concerto no mundo, em Amsterdam, o Concertgebouw emprestou seu imponente palco, com escadas laterais e um gigante órgão de tubos ao fundo, para a peça ‘Kamarámusik’. O solista não tinha em mãos um instrumento clássico, como um violino. Também não se sentou ao piano nem ao cravo. Não iria tocar harpa. Era setembro de 2022, e o percussionista Raysson Lima encheu a sala com o som do berimbau.

Ele estava acompanhado dos músicos da orquestra juvenil do Neojiba durante a turnê da Independência, que passou por países como França, Itália, Dinamarca, Bélgica e Portugal, além da Holanda. O público pôde vê-los tocar Beethoven, Schumann, Dvorák, Villa-Lobos e ainda Jamberê Cerqueira, autor da Kamará.

Baiano de Salvador, o arranjador e tubista compôs 13 minutos da chamada peça concertante para berimbau, em diálogo com os instrumentos já conhecidos de orquestra e outros de percussão típicos das rodas de capoeira. Foi a mistura da Europa com a Bahia. A fusão do clássico com o popular.

“Fui buscar a história e a importância da capoeira para compor ‘Kamarámusik’, pensando em como os músicos poderiam interagir e tocar algo diferente do que eles estavam acostumados”, relembra Jamberê, coordenador pedagógico de tuba e linguagem musical no programa e que foi o vencedor do concurso que o próprio Neojiba promoveu para a composição, com regência do maestro Ricardo Castro.

Há menos de um mês, a Orquestra Sinfônica da Bahia (Osba) esteve na paradisíaca Trancoso ao lado da baiana Luedji Luna, destaque da nova geração da MPB. No repertório, foram apresentadas seis músicas da artista em versões orquestrais, como ‘Um Corpo no Mundo’ e ‘Bom Mesmo é Estar Debaixo D’Água’. O público conferiu ainda um dos grandes pianistas brasileiros, o paulista Cristian Budu, e a apresentação dedicada ao nosso santamarense ilustre Caetano Veloso.

Ensaio da Osba no TCA
Carlos Prazeres em ensaio da Osba no TCA Crédito: Marina Silva/ CORREIO

Pipoca de Kannário

Um pouquinho antes de Trancoso, no Carnaval deste ano, quem pulou na pipoca de Igor Kannário pôde encontrar o maestro Carlos Prazeres, diretor artístico da Osba. Formado na Academia da Filarmônica de Berlim, ele faz questão de frequentar as festas do Bonfim, do 2 de Fevereiro e do 2 de Julho, para entender ‘o que é que a baiana tem’. A orquestra apresenta de três a cinco concertos populares ao ano e consagrou eventos como o Baile Concerto, o São João Sinfônico e o Verão da Osba, sendo que os dois primeiros já fazem parte do calendário musical da cidade. Não à toa a marca gráfica da Osba aproveita o B, de Bahia, num formato de... berimbau.

Prazeres explica o porquê dessa mistura do erudito com o popular: “Não haveria como ter uma orquestra na Bahia, hoje, sem que ela pudesse participar do Carnaval, do São João. Não teria sentido se ela ficasse de fora dessas festas. Não teria sentido se ela não soubesse uma maneira baiana de entender a música”, explica Prazeres.

A missão é tornar a orquestra democrática, pertencente ao povo. “Mesmo lá dentro [na pipoca de Kannário], várias pessoas vieram falar comigo e reconheceram, de alguma forma, o trabalho da Osba. É muito interessante perceber que hoje essa orquestra, de fato, consegue penetrar camadas que antes ela jamais sonhou em alcançar e que a grande maioria das orquestras no mundo não alcança.” O mantra é: a música clássica é para todos. Por isso, a Osba é ousada em seu repertório, executando não só compositores conhecidos como Beethoven, Mozart e Bach, mas também Messiaen, Hendrik e Bartók.

Na fileira do violino, desde 2007, entre idas e vindas na Osba, está o músico Mário Soares, mestre em performance pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Para ele, vale o mesmo: quem esgotou os ingressos do projeto Quinta da Casa, na Casa Rosa, em janeiro deste ano, viu o violinista desfilar por frevos e axés na companhia magistral do seu instrumento clássico. Ele levou ao Teatro Cambará uma sonoridade especial, compartilhada entre o som do violino, da voz e da rítmica afro-baiana.

A mistura, na visão de Mário, é pura riqueza. “Para além da necessidade social de se adequar às demandas culturais de um lugar, existe uma questão de enriquecimento. Ao mesclar estéticas, você enriquece o processo. Na história da humanidade, a gente sabe que as trocas culturais proporcionaram a evolução da sociedade. É muito importante essa junção, porque abre portas para quebrar preconceitos e enxergar a realidade do outro”, comenta.

Improvisação

Pensando na estética musical de Salvador, Mário cita o saudoso Letieres Leite, para quem compôs a homenagem “Antes de você partir”. Letieres é criador da Rumpilezz, uma orKestra, com K maiúsculo, de sopros e percussão, que perpetua as batidas dos terreiros de candomblé para o mundo. O grupo tem uma erudição musical grande, mas foi construído sobre alicerces outros graças à formação de Letieres, que viveu 20 anos na Europa estudando diversos ritmos, incluindo o jazz cuja maior marca é a improvisação.

O saxofonista da Rumpilezz Rowney Scott, professor associado da Escola de Música da Ufba e doutor em Execução Musical e membro fundador do grupo Garagem, explica: “O que Letieres trouxe em cima dos ritmos de matriz africana, que são a base da orquestra, foi sua informação acumulada de estudos, convivência e vivência com a música moderna, seja ela jazzística ou de concerto, e da improvisação”.

Funfun no Passo com a Orkestra Rumpilezz
Funfun no Passo com a Orkestra Rumpilezz Crédito: Paula Fróes/ Arquivo CORREIO

Atabaques, timbaus, surdos, caixa com pratos, repique e caxixis (que Letieres tocava) dão o toque desse conjunto tão harmônico e que, por isso, é a cara da Bahia e de Salvador.

A paixão por tocar é o que une todos esses grupos, a despeito de polêmicas recentes e que viraram rivalidades até, cujo centro foram os projetos mais populares, como o Osbrega, e a renovação do corpo diretivo, incluindo o maestro, da mesma Osba, disputada pela organização que hoje gere o Neojiba.

O pianista da Osba e diretor musical do Neojiba, Eduardo Torres, ensina: “A música, qualquer que seja o gênero, deve ensejar desafios para ser tocada bem e coletivamente”.

Quando o resultado aparece, surgem o público crush da Osba, os aplausos para a Rumpilezz e a crítica internacional positiva, como as 5 estrelas do francês Alain Lompech obtidas pelo Neojiba para o show na Filarmônica de Paris, em 2022, que teve o berimbau como protagonista. Diz o texto: “A música de Cerqueira [Kamarámusik], às vezes, se aproxima bastante do ‘Capriccio’ [concerto para piano e orquestra] de [Igor] Stravinsky, mas com um estilo brasileiro, portanto, pulsante, generoso e com bastante suingue”.

Temos um Stravinsky baiano. Merecido demais.

Conheça o fã de pagode e o tocador de trompa pop:

Samuel de Santana Sá Barreto, 16 anos

Fã de pagode, o adolescente tocava bateria antes de entrar no Neojiba, onde começou no coro e no violino. Em 2017, conseguiu a tão sonhada vaga para a percussão. “Há 7 anos eu não me imaginava tocando Tchaikovsky. Eu olho pra trás e vejo um menino que só queria fazer batuque e, depois de 7 anos, tocar Tchaikovsky na orquestra juvenil é bem gratificante”, comenta. Na playlist do adolescente, além de música clássica, tem Zeca Pagodinho e Filhos da Bahia.

Ueliton da Conceição Pereira, 21 anos

Tocando trompa há 6 anos, o jovem ainda tenta se adequar ao instrumento europeu, mas não se limita ao clássico. Faz arranjos de música pop e acompanha os aguardados bis populares do Neojiba, com Tico-Tico no Fubá e Aquarela do Brasil. “Não é só porque estamos numa orquestra que a gente tem que se encaixar no quadrado europeu. A gente pode sambar, sim, com o instrumento”, diz Ueliton, que, no dia a dia, ouve Tierry, BaianaSystem, Guns N’ Roses, Demi Lovato...

Trompista Ueliton Pereira, da orquestra juvenil do Neojiba por Marina Silva

Onde aprender música clássica

TCA:

O Teatro Castro Alves oferece anualmente três edições dos cursos de iniciação ao universo da música sinfônica. As aulas são destinadas a pessoas maiores de 15 anos que desejam conhecer o assunto, não sendo necessário conhecimento prévio. O propósito é justamente a introdução à apreciação musical e à prática de instrumento.

Os cursos são: “A linguagem musical da orquestra sinfônica”, com Alexandre Loureiro; “História da música: compositoras e compositores”, com Karina Seixas; e “Iniciação à flauta doce”, com Uibitu Smetak. Os três professores são músicos vinculados à Orquestra Sinfônica da Bahia (Osba).

As turmas têm um encontro semanal, realizado ao vivo através da plataforma Zoom. Com duas salas por semana de cada curso, são 390 alunos contemplados no total. A próxima edição deve iniciar as inscrições a partir da segunda quinzena de maio, e as aulas devem iniciar a partir da primeira quinzena de junho.

Parque do Queimado:

No Neojiba, as vagas são abertas para iniciantes no começo do ano (em 2024, as inscrições terminaram no dia 20 de fevereiro), e os candidatos aprovados já foram chamados. Para quem tem conhecimento musical no nível intermediário ou avançado, há a opção de participar das principais orquestras e coros do programa. Neste caso, as audições costumam acontecer em novembro.

De modo geral, é preciso ter entre 6 e 29 anos. Para os iniciantes não é preciso ter conhecimento musical prévio. O Neojiba também fornece instrumentos e acessórios de forma gratuita. Existe ainda um grupo de extensão, o Coro Comunitário, aberto a pessoas de qualquer idade. As inscrições se encerraram no último dia 14 de março. Todas as informações são anunciadas no site e nas redes sociais do programa. Fique ligado!

O projeto especial Som Salvador é uma realização do Jornal Correio, com patrocínio da Unipar, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Wilson Sons e Salvador Shopping.