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'Caminhando para um colapso': sem novos profissionais, Brasil deve ter apagão de caminhoneiros

Apenas 4% dos profissionais têm menos de 30 anos atualmente

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 4 de outubro de 2025 às 05:00

Marcos Oliveira tem 26 anos e é um dos poucos jovens que ainda ingressam na profissão de caminhoneiro
Marcos Oliveira tem 26 anos e é um dos poucos jovens que ainda ingressam na profissão de caminhoneiro Crédito: Acervo pessoal

Ainda criança, morando na zona rural de Dom Basílio, no Centro-Sul baiano, Marcos Oliveira, 26 anos, ficava observando os caminhões na estrada. O pai caminhoneiro era separado da mãe, com quem Marcos morava, mas já despertava a vontade do menino de andar pelo mundo. O avô, que trabalhava com comércio, também lidava com caminhões diariamente. "Creio que do mesmo jeito que tem criança que sonha ser médica, o meu sonho era ser caminhoneiro", diz ele, hoje na área.

Mas encontrar alguém tão jovem quanto Marcos que tenha decidido seguir carreira com caminhões pode ser um desafio. Ele só lembra de outros dois colegas. "Eu não julgo quem não quer entrar, porque tem bastante coisa melhor por aí. Mas é triste, porque, aos meus olhos, é uma profissão bonita e digna. É triste ver que está fraquejando", lamenta.

Sem novos profissionais, estudos feitos por especialistas no setor de transporte têm apontado para um cenário alarmante: a possível escassez de caminhoneiros. Esse eventual futuro apreende pesquisadores e técnicos porque o modal rodoviário é o responsável pelo transporte de mais de 60% das cargas no Brasil, segundo a Confederação Nacional dos Transportes.

No ano passado, um levantamento da Confederação Nacional dos Transportes Autônomos (CNTA) mostrou que apenas 2% dos profissionais autônomos - ou seja, que têm seu próprio caminhão - têm menos de 25 anos. Entre 26 e 35 anos, são apenas 17%. A média de idade é de 46 anos.

"A gente está caminhando a passos largos para um colapso", diz o CEO das empresas Carbo Vapt e CarboFlix, que atua com soluções voltadas a caminhoneiros e transportadora, Thelis Botelho. "Perdemos um milhão de motoristas nos últimos 10 anos e praticamente não tivemos reposição. A gente está com a mão de obra já avançada, sendo que quase tudo que a gente consome é do modal rodoviário. Toda a população vai pagar essa conta", analisa.

Jalber Rodrigues tem 38 anos e é caminhoneiro há duas décadas por Acervo pessoal

Esses diagnósticos dialogam com os achados de uma pesquisa divulgada este ano pelo Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos). Segundo o instituto, que atua nas áreas de planejamento, estruturação e implementação de projetos de logística, em 2024, a porcentagem de condutores com até 30 anos foi de 4,11%.

Por outro lado, condutores com mais de 70 anos eram 11,05%. Além disso, a cada 10 caminhoneiros em atividade no ano passado, quase seis tinham mais de 51 anos.A entidade apontou, ainda, o contingente de caminhoneiros caiu 20% no país, em uma década - em 2014, eram 5,5 milhões de profissionais em atividade.

"Essa escassez é um freio na nossa economia. Toda vez que o Brasil aumenta a produção, aumenta o PIB (Produto Interno Bruto), aumenta a demanda por produtos e o modal rodoviário tem que crescer mais que os outros para compensar a falta de infraestrutura de outros modais. Mas se a economia cresce de forma mais constante, o próprio aumento de demanda faz com que o preço do transporte rodoviário aumente e ele acaba freando a economia. Nosso PIB fica limitado muito em torno de 2%", diz o sócio-diretor do Ilos, Maurício Lima.

Pai para filho

Aos 38 anos, o caminhoneiro autônomo Jalber Rodrigues tem duas décadas de experiência. Começou com a influência da família: na infância, andava sempre na cabine do pai, que conduziu caminhões por 52 anos, até se aposentar em 2023. Os pais, inclusive, não queriam que ele seguisse a carreira, mas Jalber acredita que estava "no sangue".

Jalber mora em Feira com a esposa, a filha de 11 anos e um filho de três anos. "Não é o que eu quero para o meu filho hoje, porque a gente sofre muito na estrada", diz ele, que falava com a reportagem enquanto esperava para descarregar o caminhão em Porto Velho (RO).

Mesmo com agendamento para o dia anterior, não tinha conseguido fazer o processo. "Estou à mercê, numa cidade onde não conheço ninguém. Quem for para a profissão por falta de opção ou visando dinheiro não fica. Só fica quem tem no sangue mesmo".

Ele roda o Brasil com carga seca - ou seja, materiais que não precisam ser refrigerados. Jalber acredita que o salário não é ruim, já que a média dos que conhecem é de R$ 5 mil a R$ 6 mil. O problema é um aspecto repetido por todas as fontes ouvidas pela reportagem: o frete é caro para quem paga, mas baixo para quem faz, devido aos altos custos de manutenção.

Para ele, ainda há jovens que querem dirigir caminhão, mas é uma juventude ‘iludida’ pela internet. Assim como todas as profissões têm TikTokers, caminhoneiros não seriam diferentes. Não é difícil encontrar influencers que mostram sua rotina em caminhões nas plataformas digitais. "Mas não mostram contratempo, humilhação de guarda, empresa que não descarrega. Os jovens veem na internet e acham que é bom, por isso não vejo segurança nesses novos profissionais. Não vejo durarem na profissão".

O percurso do caminhoneiro Márcio Teixeira, 47, também teve origens na família. "Acho que quase todo caminhoneiro é uma coisa que passou de pai para filho. É o meu caso também", afirma ele, lembrando de uma trajetória de profissionais na família que remonta a um tio de seu avô. A carreira foi seguindo pelas gerações. "Acho que de mim não passa mais. Só tenho uma filha de cinco anos e não pretendo que ela siga, porque é muito complicado". Dos primos de primeiro grau, nenhum acompanhou.

Para Márcio, a escolha da profissão atualmente leva mais em conta aspectos como reconhecimento, estrutura e remuneração adequada. Passar parte da vida distante da família e as dificuldades da rotina, contudo, afastam os colegas. "Tem também aquilo de ser uma profissão que não é bem vista por alguns. Quando comecei a namorar minha esposa, fui conhecer as tias dela e até brincaram: ‘pensei que ia ser um homem barrigudo sem camisa’. Tem um estereótipo de como seria um caminhoneiro".

Atualmente, as viagens de Márcio são para estados do Nordeste - na maior parte das vezes, a carga é de material de construção. Num mês, costuma passar 10 dias em casa e 20 dias na estrada. "Já fui para São Paulo e outros estados, mas agora é menos cansativo. Viajo mais perto e, em termos financeiros, é quase a mesma coisa", explica.

Remuneração

Por outro lado, muitos que já estão na ativa não querem mais que essa transferência geracional aconteça. Pai de cinco filhos, o caminhoneiro Salvador Carneiro, 54 anos, não quis que nenhum seguisse a carreira. Dos filhos, duas são advogadas, uma é biomédica, o de 19 anos faz Odontologia e o mais novo tem nove anos. Ele, por sua vez, foi para o caminhão um pouco mais tarde do que sua geração, aos 34 anos. Já tinha trabalhado em várias áreas: na indústria, em almoxarifado, em contabilidade e em banco.

"Era uma visão que a gente tinha de que teria liberdade. Nasci próximo à BR, vendo as renovações das frotas, e sempre tive vontade de estar na estrada. Via como uma oportunidade de conhecer outros estados", lembra ele, que mora em Riachão do Jacuípe.

Na época, vendeu uma casa que tinha e comprou um caminhão. Dali em diante, se engajou na profissão. Participou de movimentos pelos direitos dos caminhoneiros quatro vezes em Brasília, desde 2018.

"Já teve época de um carreteiro tirar R$ 8 mil, R$ 10 mil. Hoje, para fazer isso, tem que ralar muito. Na carteira, o salário base não chega a R$ 4 mil. Além de a gente que está na profissão não querer que os filhos ingressem, pelos riscos e pela falta de estrutura, tem outras opções. Temos mais universidades e ensino mais aberto para eles terem outra carreira. Agora, 90% dos filhos de caminhoneiro estão fazendo faculdade e seguindo suas vidas de forma diferente da minha", conta.

Salvador reduziu a quantidade de viagens nos últimos tempos. Há quatro anos, tem uma empresa de água e trabalha para si, especialmente entre a Bahia e Sergipe. Ele admite que é raro encontrar colega com menos de 30 anos. "A maioria já passa dos 45, 50. Tem motoristas com 70, 75. Conheço que está com 83 anos ainda rodando caminhão".

O presidente da Cooperativa de Caminhoneiros de Feira de Santana, Antônio Lima, acredita que, em pouco tempo, haverá mesmo um apagão de caminhoneiros. "Na família de meu pai, ele e dois tios eram caminhoneiros. Meu pai gerou dois: eu e meu irmão. Meu tio gerou três, outro tio gerou mais dois. Um dos meus primos gerou dois. Fora isso, o restante não quer mais saber de caminhão. Eu tenho um filho de 40 anos que é engenheiro de telecomunicações", conta Lima, que tem 64 anos.

Ele aponta que um dos problemas para o desencanto dos mais novos com a profissão é a remuneração. Existe uma lei de 2015 que garantiria o piso mínimo do frete, mas a constitucionalidade dela está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2018.

"A gente está numa luta na cooperativa para que essa lei seja cumprida. Um rapaz que vai para a estrada vê essas dificuldades, vê que não tem qualidade de vida e baixa remuneração. Chega num posto e não tem um banheiro decente para tomar banho, chega na empresa para descarregar e às vezes têm que dormir na rua, sujeito a assalto. Tudo isso afugenta os mais jovens", avalia. Na cooperativa criada em 2022, dos cerca de 30 membros, nenhum tem menos de 30 anos.

Contratação

O Ilos é uma das entidades que defende a mudança no modelo de contratação dos caminhoneiros. Hoje, a maior parte dos trabalhadores é autônoma e investe no próprio caminhão. A tendência, na avaliação da empresa, é de que as empresas invistam na compra dos veículos - o que já começou a acontecer, principalmente no interior do país.

"É cada vez mais difícil comprar o caminhão, então as empresas de transporte acabam tendo que fazer um investimento nesse ativo. Existe um investimento maior, porque elas têm que treinar motoristas. O Brasil tem que entender que o ‘longo prazo’ um dia chega", diz Maurício Lima, sócio-diretor do instituto.

Para o CEO da Carboflix e Carbo Vapt, Thelis Botelho, é preciso discutir uma mudança na legislação. Hoje, só é possível dirigir caminhão quem tem Carteira Nacional de Habilitação (CNH) nas categorias C ou E, mas todas exigem pelo menos um ano na categoria B. No caso da E, também é preciso ter pelo menos 21 anos. "Mesmo pessoas mais velhas que estão chegando não chegam prontas. Elas vão aprender na estrada, só que mais velhas", explica.

Ele cita que mudanças anteriores nas leis também têm afetado essa renovação de caminhoneiros, como não poder levar os filhos na cabine como antes. Crianças precisam usar cadeirinha de acordo com a idade e não é possível ultrapassar a capacidade máxima da cabine.

"Hoje, o Uber concorre com o caminhoneiro. Muita gente que poderia estar sendo motorista de caminhão está sendo motorista de Uber. Roda perto e volta para casa. Então, o surgimento de novas profissões também tira esses profissionais do caminhão", avalia.

Segundo Botelho, além das transportadoras, muitas empresas - especialmente indústrias - precisam dos profissionais. No caso dessas, tem sido comum a contratação do tipo celetista (CLT). "Muitas empresas têm caminhão parado porque não caminhoneiro. São essas que oferecem CLT. Tem muita vaga de motorista hoje. A falta de profissionais já é latente", pontua.

Esse é o caso de Marcos Oliveira, o caminhoneiro de 26 anos. Ele é contratado com carteira assinada em uma empresa de Dom Basílio. Com o caminhão da empresa, transporta frutas até São Paulo duas vezes por mês. De lá, às vezes segue para Curitiba antes de retornar à Bahia - na capital paranaense, retira a carga de embalagens para as frutas colhidas aqui.

A empresa que trabalha não é grande, mas Marcos conhece os relatos de outras que oferecem ‘escolinha’ para novos contratados. "Ninguém queria que os caminhoneiros parassem na pandemia. Não paramos, mas agora todo mundo esquece o valor. Se tivesse mais apoio e respeito, tinha bem mais dessa rapaziada nova querendo entrar".