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Thais Borges
Publicado em 6 de dezembro de 2025 às 05:00
Depois de uma corrida de 20 quilômetros entre sua casa, na Vitória, e o local onde cresceu, nas proximidades do Mercado do Rio Vermelho, o médico Gabriel Almeida, 45 anos, começou a compartilhar reflexões com os seguidores, em sua página no Instagram. Mostrou o prédio onde a família vivia e onde ele disse que tinha um cantinho de estudos no quarto compartilhado com três irmãos. >
Compartilhou uma foto da escola Medalha Milagrosa, onde estudou, e a Igreja de Santana, onde foi batizado. Naquela ocasião, narrou que elencaria nove pontos que o teriam ajudado a conseguir sucesso. “As pessoas de sucesso normalmente têm um padrão a ser seguido”, dizia. O primeiro era justamente que nunca foi uma "vítima" em sua vida. "Tudo que aconteceu na minha vida o culpado sempre fui eu". Em seguida, escreveu o que seria o primeiro ponto do sucesso. “Não dê desculpas. A culpa de onde você está é sua. Receba isso e será um passo importante para sua vitória. Nunca faça o papel de vítima”, enfatizou. >
Médico Gabriel Almeida
Essas postagens foram feitas há 181 semanas - portanto, pouco mais de três anos antes do último dia 27 de novembro, quando ele foi um dos alvos da chamada Operação Slim (que, em inglês, significa ‘magro’), deflagrada pela Polícia Federal (PF). Na ocasião, a PF informou que o objetivo da ação era desarticular uma rede dedicada à produção, fracionamento e comercialização clandestina do princípio ativo tirzepatida - a base do Mounjaro, da farmacêutica Lilly do Brasil. O medicamento, que é usado no tratamento de diabetes tipo 2 e da obesidade, é considerado por especialistas a ‘caneta emagrecedora’ mais eficiente disponível no mercado. >
Ao todo, foram cumpridos 24 mandados de busca e apreensão em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, em clínicas, laboratórios, estabelecimentos comerciais e casas ligadas aos investigados. A clínica de Gabriel Almeida, o Núcleo GA, tem unidades em Salvador, Feira de Santana, Petrolina (PE) e São Paulo (SP). Na capital paulista, o espaço fica em um casarão de mais de 1,3 mil m² na Avenida Brasil, no luxuoso bairro Jardim América. >
Outro alvo da Operação Slim foi a farmácia de manipulação Unikka Pharma, que se apresenta, inclusive, como parceira oficial do jogador Neymar Jr. Em seu site, a Unikka afirma ter sido fundada em 2022 "com a missão de revolucionar o mercado nacional". Já no Instagram, a Unikka fala destaca sua linha ortomolecular "inteligente", com o que haveria de mais avançado em ciência e tecnologia. "Já impactamos milhares de vidas e ajudamos mais de 100 mil médicos a transformar sua prática clínica", dizem, num post de setembro. >
De acordo com a PF, o grupo de investigados mantinha uma estrutura de fabricação em condições incompatíveis com padrões sanitários, realizando envase, rotulagem e distribuição do produto de forma irregular. A polícia diz ter encontrado indícios de produção em série em escala industrial, o que não é permitido para manipulação magistral de medicamentos. >
"A apuração também revelou a comercialização do material por meio de plataformas digitais, sem controles mínimos de qualidade, esterilidade ou rastreabilidade, elevando o risco sanitário ao consumidor. Além disso, estratégias de marketing digital induziam o público a acreditar que a produção rotineira da tirzepatida seria permitida", dizem, em nota. >
Formação>
Ainda na escola, Gabriel decidiu que queria ser médico. Aos seguidores, nas redes sociais, ele já contou sobre como a família não tinha carro e que, em sua casa, itens como biscoitos recheados ou mesmo queijo não eram comuns. Era o tipo de guloseima que comia quando visitava um primo próximo. >
“Na escola, eu sempre falava que queria fazer Medicina e diziam que ninguém ali passava. Meus pais, na tentativa de me proteger, falavam para fazer outra coisa. Quando não passei no vestibular, meu pai falava ‘meu filho, vamos alugar um carro para você rodar táxi’. Mas não era o que eu queria", contou, numa ocasião. O pai era cortador de cana no interior de Alagoas. "Era boia fria. Comparado à situação dos meus pais, eu tinha uma situação até boa. Mas, em minha casa, não existia queijo, não existia nada disso. Era uma condição muito difícil, que eu poderia dar várias desculpas", acrescentou. >
Gabriel se formou em Medicina pela Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas, em 2005. Na época, defendeu um trabalho de conclusão de curso que analisava a situação dos serviços de internamento pediátrico público e conveniados ao SUS. Em 2008, concluiu a residência em cirurgia geral pelo Hospital Geral Roberto Santos. >
Mas, aos poucos, a atuação como cirurgião geral foi sendo compartilhada com cursos de medicina ortomolecular, fisiologia da longevidade e modulação hormonal. Segundo seu currículo lattes, entre 2016 e 2017, concluiu uma especialização em adequação nutricional e manutenção da homeostase endócrina com um trabalho final sobre menopausa orientado justamente pelo médico Lair Ribeiro. >
Famoso nos anos 1990 por livros de autoajuda e palestras de motivação, o Ribeiro é uma figura controversa na Medicina. Na pandemia da covid-19, por exemplo, recomendava o uso de medicamentos e terapias comprovadamente ineficazes contra o coronavírus, a exemplo da ozonioterapia e da cloroquina. >
Colegas>
Hoje, Gabriel Almeida se apresenta como "escritor, palestrante, professor de médicos e empresário”. Mas, no meio médico, seu nome sempre provocou reações divergentes. De um lado, admiradores da forma como ele conduz o trabalho, suas empresas e o trato com os pacientes. De outro, médicos que questionavam seus métodos, suas prescrições e uma alegada falta de evidências científicas em alguns tratamentos. >
Entre fãs e haters, nos últimos anos, Gabriel também se tornou famoso entre os pacientes. Nas redes sociais, onde é muito ativo com conteúdos sobre saúde, ele virou também um influencer de sua área, chegando a mais de 750 mil seguidores apenas no Instagram, que é sua principal plataforma. >
“Gabriel fala tudo que ele faz no consultório. É como se ele não escondesse o jogo, diferente de outros profissionais”, diz uma médica em um vídeo postado na página da Academia Dr. Gabriel Almeida, em fevereiro de 2020, sobre o curso de Emagrecimento Avançado - Protocolo GA, que é voltado para médicos. >
Na própria postagem, o médico conta que fez Medicina para combater doenças. “Porém, após ficar obeso e passar na pele todas as dificuldades que a pessoa acima do peso sente, eu decidi trabalhar com emagrecimento. Aprendi que ter saúde é muito mais que somente a ausência de doença. Saúde também é bem estar, vitalidade e autoestima”, declarou, alegando que trabalha com um conceito de saúde integral. >
Há 65 semanas, a Academia GA, fundada por Gabriel, dizia ter capacitado mais de quatro mil médicos em todo o país. A entidade alega buscar atualizar a prática médica “através de uma educação baseada em evidências”.>
Mesmo desde o último dia 27 de novembro, Gabriel tem mantido postagens - em especial, vídeos do tipo Reels e stories. Ele tem compartilhado vídeos de colegas e até de pacientes que criticam a operação da PF, defendem a atuação do próprio Gabriel ou a manipulação de tirzepatida. >
Em um dos vídeos, o médico Thiago Omena afirma que Gabriel é, hoje, o maior prescritor de tirzepatida manipulada no Brasil. "Logo, é a melhor pessoa para a indústria farmacêutica mostrar o seu poder", disse. A reportagem tentou contato com Omena através de sua clínica, mas não teve resposta. >
Nos últimos anos, Gabriel ficou conhecido por ser médico de artistas como Pablo do Arrocha, Tony Salles, Scheila Carvalho e Wesley Safadão. No ano passado, Gabriel arrematou uma partida de pôquer com Neymar, em um leilão promovido pelo atleta, por R$ 450 mil. Além disso, o médico foi parar no noticiário no ano passado também por questionar o bacharel em Nutrição Daniel Cady, ex-marido de Ivete Sangalo, em uma discussão online em 2024. >
Na ocasião, Gabriel comentou em uma postagem com um trecho de uma participação de Cady em um programa de rádio local. Cady destacou os efeitos colaterais das canetas emagrecedoras e disse que existia um uso indiscriminado de remédios. Ao ver a postagem, Gabriel disse que Cady "precisava estudar" e que as substâncias também eram aprovadas para tratamento de obesidade e sobrepeso.>
Gabriel é um dos fundadores do grupo Guardiões, que se apresentou como um “chamado” para médicos que queriam se reconectar com um propósito maior. Como outros grupos do tipo, a exemplo do Legendários, é exclusivo para homens e alega se inspirar em projetos de “transformação masculina”. >
Nos últimos anos, ele e sua esposa compartilharam registros de uma vida luxuosa nas redes sociais. Além de viagens a destinos como Ibiza, Dubai, Ilhas Virgens (EUA) e Itália, um empreendimento paradisíaco também foi parar no meio das investigações: a ilha particular de Carapituba, na Baía de Todos-os-Santos, comprada por Gabriel e outros sócios no início do ano, na forma de consórcio - ou seja, com cotas para usos semanais de cada um. >
Em abril, em entrevista ao Alô Alô Bahia, o próprio Gabriel disse que a propriedade serviria como ponto de encontro dos maiores profissionais do Brasil com empresários de empresas bilionárias. A ilha seria, assim, um centro de experiências imersivas, oferecendo vivências presenciais com foco em mentoria, educação e aceleração de carreira.>
A ideia era transformá-la no ‘paraíso dos médicos. O grupo de sócios também era formado justamente por Derek Camargo e Lucas Gasparini. O último é um dos fundadores da Unikka Pharma. "A ilha funcionava não apenas como um centro de estudos, mas também a apresentação dos produtos para que fossem vendidos para clínicas e laboratórios", afirmou o delegado da Polícia Federal, Fabrízio Galli, em entrevista ao Fantástico, no domingo.>
Em junho deste ano, o Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb) aplicou uma sanção disciplinar de censura pública a Gabriel por quatro artigos do Código de Ética de Medicina. Na época, ele informou ao CORREIO que tem prontuário médico e que suas prescrições têm nomes dos pacientes.>
Cuidado>
Uma consulta no Núcleo GA leva em média uma hora, podendo durar mais. Há dois anos, a chef Angeluci Figueiredo, mais conhecida como Preta, chegou à clínica com um quadro de colesterol alto, pré-diabetes e compulsão alimentar. >
"Quando chegava a noite, eu comia a parede. Pediram muitos exames, fiz um tratamento e me dei muito bem. Não era só o remédio, ele dizia que tinha que ter dieta e exercício físico, porque ajudava no sono. Eu comia muito na madrugada porque meu sono estava desequilibrado", lembra ela, que perdeu 10 quilos.>
Ela era atendida por outro médico do Núcleo GA, mas sempre encontrava Gabriel Almeida, que perguntava pelo tratamento. "Gabriel sempre foi à frente do seu tempo. Conheci através do meu filho, que leu algo sobre ele. Mas ele é sempre solícito, muito atencioso. Ele mede altura, bioimpedância, é tudo muito sério", diz.>
Gabriel Almeida foi procurado pela reportagem para uma entrevista, por Whatsapp e por meio de sua defesa, e não respondeu aos contatos. Outros médicos apresentados como "exclusivos" do Núcleo GA também foram contatados e não deram respostas. >
Sua defesa tinha divulgado uma nota em que enfatizava que Gabriel não fabrica, não manipula e não rotula qualquer espécie de medicamento. "A acusação de que ele seria responsável pela produção de fármacos é fática e tecnicamente impossível, visto que sua atuação profissional se restringe, exclusivamente, à medicina clínica e à docência. A relação do Dr. Gabriel Almeida com a substância tirzepatida (princípio ativo do Mounjaro) é estritamente científica e acadêmica", afirmam. >
O que diz a defesa do médico Gabriel Almeida, alvo de operação da PF
A Unikka fez um comunicado oficial de que Gabriel não tem vínculo societário com a empresa. A empresa também disse estar sendo alvo de uma injustiça. "Somos uma farmácia legalizada, com mais de 300 colaboradores. Vendemos exclusivamente com receita médica. (...) Atendemos 30 mil médicos, que atendem mais de 1 milhão de pacientes. Nossa medicação é segura, acessível e individualizada. Estamos sendo acusados de crescer demais? Quem define o limite de uma farmácia que age dentro da lei? A verdade? Uma multinacional estrangeira não conseguiu competir". >
O espaço para manifestação segue aberto. >
Entidades médicas enviaram uma carta aberta à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) solicitando a suspensão da fabricação, comercialização, distribuição e prescrição de versões manipuladas e injetáveis de agonistas de GLP-1/GIP e substâncias correlatas utilizadas no tratamento da obesidade. As mais conhecidas do tipo são a tirzepatida (Mounjaro) e a retratutida, ainda não disponível no Brasil. >
Divulgado no dia 28 de novembro, o texto é assinado pelas Sociedades Brasileiras de Endocrinologia e Metabologia (Sbem), de Diabetes (SBD), pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e pela Associação Médica Brasileira. A manipulação de semaglutida (Ozempic e Wegoby), que é agonista apenas do hormônio GLP-1, já é proibida pela Anvisa desde agosto. >
Entre os argumentos apontados pelas entidades no documento, está o que entendem ser um risco sanitário iminente, caracterizado por produção irregular; a ausência de controle de qualidade e comercialização clandestina e o que chamam de evidências consistentes de circulação nacional desses produtos em larga escala. Citam, ainda, "a constatação policial e sanitária recente, com operação da Polícia Federal revelando um esquema estruturado de fabricação e venda clandestina dessas formulações e a documentação técnica demonstrando que esse mercado opera de maneira recorrente, organizada e sem qualquer amparo regulatório". >
"As moléculas originais (por exemplo, a tirzepatida) possuem características estruturais complexas, exigindo: processos industriais de alta complexidade, cadeia fria rigorosa, testes avançados de estabilidade, validação de dose, diluição e veículo e sistemas de envase asséptico com certificação específica. Nenhuma dessas etapas pode ser reproduzida adequadamente em ambiente de farmácia magistral", afirmam.>
Por outro lado, a Associação Nacional de Farmacêuticos Magistrais (Anfarmag), que representa as farmácias de manipulação, destacou que a manipulação da tirzepatida é permitida, desde que o medicamento industrializado tenha registro no Brasil e os testes de qualidade exigidos pela Anvisa sejam respeitados. "Nesse sentido mostra-se premente, necessário e indispensável a urgente definição do referido marco legal de forma a aclarar e trazer segurança jurídica sobre as práticas a serem observadas em relação aos produtos magistrais estéreis".>
O Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb) não se manifestou. >