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Millena Marques
Publicado em 19 de agosto de 2025 às 13:14
Mais uma polêmica envolvendo a Irmandade da Boa Morte, confraria afrocatólica e secular que é responsável pela Festa de Nossa Senhora da Boa Morte em Cachoeira, foi registrada durante as comemorações da tradicional celebração. Desta vez, uma noviça da entidade conta que foi surpreendida por um delegado da região durante a missa solene em homenagem a Nossa Senhora da Glória, no último dia 15, que solicitou a sua retirada do templo por causa de uma medida protetiva. >
O episódio, segundo a denúncia, ocorreu na Igreja Matriz do Rosário, no terceiro dia da festa. A noviça Uiara Lopes, 55 anos, diz que uma medida protetiva foi expedida contra ela, mas que não teve acesso ao documento. “Ele (o delegado) disse que eu deveria me retirar da igreja. Ele, armado, um homem branco, me abordou dessa forma”, conta. Ela informou que estava no templo na condição de noviça, mas a autoridade continuou com a abordagem. “Ele disse que eu teria que sair na hora e, se eu não saísse, eu iria presa e algemada”, diz. >
Veja imagens dos festejos da Irmandade da Boa Morte ao longo dos anos
Uiara é noviça na irmandade, o que significa que está em período de iniciação e integração plena aos quadros tradicionais, mas já detém direitos, deveres e responsabilidades religiosas e culturais, especialmente por ser herdeira de uma cadeira ancestral da matriarca fundadora Ludovina Pessoa - Rainha do Ogum, transmitida por linhagem familiar direta. >
“Eu tenho 55 anos. Sou militante do Movimento Negro, sou do grupo Mulheres de Axé do Brasil há quase dez anos, sou há mais de 30 anos militante do Movimento Negro. Foi um choque para mim”, afirma. Após a abordagem, Uiara passou mal, chegou a desmaiar e ficou encaminhada para um hospital da cidade. A ação gerou comoção entre os fiéis e interrompeu a missa. >
O episódio do dia 15 de agosto integra uma série de polêmicas envolvendo a Irmandade da Boa Morte. Tudo teria começado em 2017, quando Uiara foi apontada em uma conversa com as irmãs de farda para fazer parte da irmandade. “O meu processo de proximidade com a irmandade tem a ver com essa linhagem ancestral, com o meu entendimento do que é perpetuação de legado, tem a ver com a relação ancestral da minha identidade religiosa”, diz. A indicação de Uiara gerou debates dentro da entidade e fora dela. >
Um ogã do terreiro Roça do Ventura, o mesmo da noviça, expediu uma carta dizendo que não autorizaria a entrada de Uiara na Irmandade da Boa Morte. “Só que esse ogã, que nada tem a ver com a irmandade, achou que eu não poderia estar na Irmandade da Boa Morte. Daí começou o meu tormento”, diz Uiara. O ogã é um líder espiritual que auxilia nos rituais e cerimônias, cargo importante em terreiros de religiões afro-brasileiras. >
Integrantes com cadeira ancestral da irmandade, que atualmente ocupam a condição de noviças, mas possuem linhagem ancestral direta ligada às famílias fundadoras e detentoras do legado da Irmandade, entregaram, ainda no dia 15 de agosto, uma carta oficial à ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e a outras autoridades federais e estaduais. O documento denuncia perseguições de caráter moral e judicial no exercício de seus direitos e funções tradicionais. >
A medida protetiva foi solicitada por Celina Sala, advogada, ex-administradora da irmandade, que também estava presente na missa. Além de Uiara, a noviça Juçara Lopes também foi alvo do mandado de segurança. Celina não possui um cargo oficial na irmandade, mas apoia a irmandade no setor administrativo a pedido da falecida Irmã Estelita, então juíza perpétua. O CORREIO não conseguiu o contato da advogada. O espaço segue aberto. >
A Polícia Civil foi procurada pela reportagem na segunda (18) e nesta terça-feira (19), mas não houve resposta até a publicação desta matéria. >
Em 2022, a eleição de Joselita Alves como presidente da entidade intensificou as polêmicas. Ela foi eleita para o cargo durante assembleia que acontece a cada quatro anos desde o final da década de 80, quando a sede da irmandade estava em construção. A função, aliás, só foi criada para que houvesse uma pessoa responsável por assuntos jurídicos e administrativos, como o recebimento de apoios financeiros para a organização da festa. Apesar dessa responsabilidade, a celebração ainda deveria ser conduzida totalmente pela Comissão de Festa, definida anualmente pelas irmãs. >
No ano passado, às vésperas da festa, Joselita Alves foi vítima de uma tentativa de destituição do atual cargo através de ação iniciada por Celina Sala. Do outro lado, estavam a própria Celina e pelo menos dez das 17 irmãs da confraria que acusam Joselita de não ter prestado contas ao Governo do Estado pelo apoio recebido para a realização da última edição da festa. Mesmo com essa disputa, os festejos aconteceram. >
De acordo com o documento de denúncia, ao qual o CORREIO teve acesso, um grupo de irmãs favoráveis a Joselita afirma que as eleições internas e democráticas que ocorreram em 2022 não foram respeitadas por outra ala, que ingressou com uma ação judicial no ano seguinte para anular a ata da eleição, a posse da mesa diretora e o novo>