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Millena Marques
Agência Brasil
Publicado em 27 de outubro de 2025 às 09:40
A pandemia da covid-19 fez 284 vítimas indiretas entre 2020 e 2021: crianças e adolescentes que perderam os pais, avós ou outros familiares mais velhos que exerciam papel de cuidado em suas residências. Entre elas, 149 mil perderam o pai, a mãe ou os dois. Os dados são de pesquisadores ingleses, brasileiros e americanos.>
A professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo Lorena Barberia, uma das pesquisadores do estudo, destaca que os impactos de uma emergência sanitária são identificados primeiro entre as vítimas diretas, mas há também aqueles que são afetados por essas mortes.>
"Nós quisemos olhar a vulnerabilidade das pessoas que dependem de quem faleceu. Achamos super importante lembrar que as pessoas acima de 60 anos não só tinham mais chance de morrer, mas, muitas vezes, tinham um papel na estrutura familiar muito decisivo. Muitas crianças e adolescentes dependiam dessas pessoas. Então, pensamos que tínhamos que considerar essas estimativas, tanto de pais e mães como desses responsáveis".>
Vacina continua sendo necessária para enfrentar a covid
Dados demográficos foram a base para a realização do estudo. Entre eles, estão a taxa de natalidade e o excesso de mortalidade entre 2020 e 2021. Foi constatado que:>
Cerca de 1,3 milhão de crianças ou adolescentes, de 0 a 17 anos, perderam um ou ambos os pais, ou algum cuidador com quem elas viviam, por razões diversas; >
Dessas, 284 mil se tornaram órfãos ou perderam esse cuidador por causa da covid-19;>
Com relação apenas às mortes por covid-19, 149 mil crianças e adolescentes se tornaram órfãos e 135 mil perderam outro familiar cuidador; >
70,5% dos órfãos perderam o pai; 29,4%, a mãe; e 160 crianças e adolescentes foram vítimas de orfandade dupla;>
2,8 crianças ou adolescentes a cada 1 mil perderam um ou ambos os pais, ou algum familiar cuidador por covid-19;>
Entre estados, as maiores taxas de orfandade são as do Mato Grosso (4,4), Rondônia (4,3) e Mato Grosso do Sul (3,8), enquanto as menores são do Rio Grande do Norte (2,0), Santa Catarina (1,6) e Pará (1,4). >
Em 2021, Ana Lúcia Lopes, hoje com 50 anos, perdeu o companheiro, o fotógrafo Cláudio da Silva, o que fez com que seu filho, Bento, que tinha 4 anos, ficasse órfão de pai. Ela lembra que esses números dizem respeito a crianças e adolescentes reais, que sofreram e continuam sofrendo com as mortes de seus entes queridos. >
Sem nenhum fator de risco para a doença, ele tinha 45 anos e foi infectado durante uma viagem a trabalho. Com sintomas respiratórios, foi internado em uma quinta-feira, entubado na sexta e não resistiu após uma parada cardíaca, na segunda-feira seguinte. Nem pode rever o filho, após os dois meses de trabalho fora de casa. >
“Eu contei para o Bento logo que aconteceu. A gente tinha um cachorrinho que morreu um pouco antes. Aí, eu falei para ele que o cachorrinho precisava de alguém lá no céu para cuidar dele e que o papai tinha ido fazer isso. Às vezes ele me via chorando e falava: "Mãe, você tá chorando por causa do meu pai?".>
"Apesar de tudo, no começo, ele parecia bem. Um tempo depois, quando ele foi mudar de classe na escola, ele começou a chorar bastante, porque não queria perder a professora. Aí, eu perguntei o que ele estava sentindo, e ele disse: ‘Ah, mãe, acho que eu queria o meu pai’. Foi quando ele começou o atendimento psicológico".>
Cláudio recolhia a contribuição previdenciária referente ao seu trabalho como microempreendedor individual, o que garantiu a Bento a pensão por morte e evitou que a família passasse por problemas financeiros. De acordo com outra autora do estudo, a promotora de justiça da cidade de Campinas (SP) Andréa Santos Souza, os problemas financeiros são os mais frequentes em situações de orfandade. >
Desde 2015, as certidões de nascimento já são emitidas em conjunto com o CPF e, quando o documento é registrado, os cartórios associam o número das crianças ao CPF dos pais, o que permite o cruzamento de informações, inclusive em casos de orfandade. >
Com isso, a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen/Brasil) verificou que, de março de 2020 a setembro de 2021, 12,2 mil crianças de até 6 anos ficaram órfãos por causa da covid-19, com proporções similares de mortes maternas e paternas, e de ocorrências ao longo dos meses. Como os dados da Arpen cobrem apenas as crianças nascidas de 2015 para cá ou aquelas que tiveram a certidão de nascimento reemitida, não seria possível saber a dimensão da orfandade apenas por eles, mas os registros serviram para reforçar a validade das estimativas do estudo. >
“O objetivo é lembrar que, mesmo depois do fim da pandemia, nós precisamos de políticas públicas para dirimir as desigualdades provocadas pela pandemia, porque nós sabemos que algumas pessoas saíram em uma situação muito mais vulnerável que outras. Não houve um programa desenhado para essas crianças especificamente, e a sociedade não estava acostumada a essa magnitude de órfãos. Os programas que existem claramente precisam ser fortalecidos, porque temos um grupo novo de crianças e adolescentes, que não era esperado", reforça a pesquisadora Lorena Barberia.>