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Flavia Azevedo
Publicado em 18 de outubro de 2025 às 13:00
Do mesmo jeito que aconteceu em Salvador, os ingressos para a primeira semana de apresentações da peça Um Julgamento, estrelada por Wagner Moura, no Rio de Janeiro, esgotaram em poucos minutos. As pessoas que não conseguiram comprar terão uma nova chance nessa segunda (20), quando será aberta a venda para a próxima semana e o corre-corre deve se repetir. Justo. Afinal, não é todo dia que um ator brasileiro, praticamente indicado ao Oscar e sumido dos palcos há 16 anos, decide voltar ao teatro. Principalmente para interpretar um texto inspirado em Henrik Ibsen, o dramaturgo norueguês que fez do desconforto um estilo. Pois eu estive na plateia em Salvador e estou aqui pra lhe ajudar a decidir se vale a pena fazer vigília, plantão, viagem e romaria para conseguir um ingresso e assistir ao "espetáculo de Wagner Moura". >
A primeira constatação se impõe pra qualquer pessoa. Não sou crítica de teatro, aqui falo do lugar de público comum (que é quem lota, ou não, os teatros): Wagner é mesmo um "monstro". O que vi foi um profissional maduro e, provavelmente, em sua melhor forma. Além da técnica, a autoconfiança - alimentada por aplausos de altíssimo valor em boa parte do planeta - deve contribuir para o magnetismo que ele exala e é perceptível, possivelmente, até pela última pessoa na última fileira do teatro. Ele está fenomenal e isso é quase um problema. Para os companheiros de cena, claro. Explico: há um inegável abismo entre o desempenho dele e a performance dos outros atores. Salvo Fernanda Paquelet, atriz convidada em Salvador. Experiente, correta, forte, imponente. Uma presença belíssima. Mesmo.>
A ideia da peça é uma grande sacada: revisitar o julgamento do personagem de Ibsen, em Um Inimigo do Povo, à luz de opiniões, polarizações e emoções contemporâneas. O texto original, escrito no século XIX, conta a história de um médico que foi declarado "inimigo do povo" por ter apontado contaminação na água de um balneário e, com isso, prejudicado atividades econômicas. A "moral da história" é questionar a tirania da maioria, a manipulação da opinião pública e aquele perigo de estar errado junto com todo mundo.>
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Em Um Julgamento, o mesmo médico é julgado novamente, e a ideia de que "a verdade, hoje, nem existe" é acrescentada. A proposta é profunda, complexa e não poderia ser mais atual. O que, principalmente, muda em relação à obra original é o ser humano, ou seja, o (muito) que nos aconteceu de lá pra cá.>
Outro acerto é convidar parte do público para subir ao palco e participar, com votos, do julgamento. A interação é no tom, sem os constrangimentos e exposições tão comuns nesse tipo de dinâmica. A direção é precisa, os recursos técnicos - simples e criativos - funcionam muito bem, e o Trapiche Barnabé (onde a peça foi encenada) - com sua arquitetura industrial e ar de porto antigo - ofereceu uma ambientação irresistível. Antes de tudo isso, ver aquela fila imensa de pessoas, em Salvador, indo ao teatro como se fosse show de estádio, me fez lembrar outros tempos da cena baiana e já valeria o ingresso.>
Mas há outras coisas que precisam ser ditas. Comentários de muitas pessoas (e concordo) apontam o texto, que tenta soar coloquial e acaba caindo em certa fragilidade, até falado com erros de português que não cabem nos perfis dos personagens. No conteúdo, a proposta de "julgamento" - e do final que depende da opinião do público, a cada sessão - se corrompe quando a estrutura da peça já traz, nos primeiros momentos, a ideia de que, se você é uma "boa pessoa", estará do lado do médico Thomas Stockmann, personagem de Wagner, evidentemente. A apresentação do conflito, portanto, joga um baldinho de gelo na emoção da experiência que se vende. Se é pra nos fazer pensar e julgar, precisamos de algum equilíbrio na exposição da humanidade, do sofrimento, e das intenções dos dois lados. Isso seria parte imprescindível do "novo", acho. Uma beleza que não veio.>
Fato é que a manipulação de opinião pública, criticada no texto original, se repete. Só que, agora, para o outro lado. Desta vez, o público (a "opinião pública") é empurrado a dar razão ao personagem principal. Ou seja, o espetáculo sucumbe à reprodução do que critica: a transformação de embates complexos em eventos simplificados, nos quais as pessoas têm "certezas instantâneas". Se a verdade pode assumir diferentes formas, Um Julgamento aposta em apenas uma e fica por isso mesmo. >
Nesse sentido, acho que perde uma grande chance e, mais grave ainda, a obra cai em uma armadilha: ao conduzir o público à unanimidade, condena novamente o personagem, quando parece absolver. O próprio acusado repete em cena o conceito chave de que "a maioria nunca tem razão". Ou seja, ao absolvê-lo por unanimidade, condenamos? Ele está errado e estamos todos errados junto com ele? Ou a maioria passa a ter razão? Esse dilema é proposital? Se for, é genial! Mas não sei.>
O espetáculo tem questões, sim. Porém, pelo menos um mérito inegável: ele traz o fogo daquele teatro que faz o público sair discutindo na calçada, seja o impacto da atuação de Wagner ou questões sobre verdades, julgamentos e "quetais". Entre tropeços textuais e existenciais, é um trabalho importante. Então, vale a pena fazer vigília, plantão, viagem e romaria ir ao espetáculo? Vale. Por muitos motivos. Principalmente porque o teatro precisa de nós e nós precisamos dele. E Wagner, nesse julgamento (que extrapola a cena), é juiz, réu e advogado da própria arte que exerce. Não sei se você gostou ou gostará, mas eu adorei ter ido e iria outra vez.>
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