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Flavia Azevedo
Publicado em 8 de maio de 2025 às 11:00
Por @flaviaazevedoalmeida>
Em minha coluna você não vai encontrar “assunto encerrado”, “autoridade inquestionável”, “ídolos intocáveis” nem medinho de “hate” ou “cancelamento”. Muito menos “download automático do pacote de opiniões”, esse combo contemporâneo que traz - junto com o alinhamento a uma pauta central - a “obrigação” de concordar com várias pequenas “verdades”. Acontece que eu penso, logo decido o que me cabe. >
Na prática, funciona assim: odeio o machismo E adoro a convivência com homens. Percebe que usei “E” em vez de “MAS”? Veja que, no caso, não há contradição necessária. Posso dar vários outros exemplos, mas hoje quero dizer que adoro o movimento negro E estou gostando muito da crescente conversa dos pardos sobre a qual é óbvio que você já ouviu falar. Inclusive, finalmente, voltei a ser morena e estou só felicidade. Por que isso seria da sua conta? Se lhe interessa saber, leia porque até o fim deste texto estará bem explicado. >
Você sabe que todo mundo tem, além dos próprios problemas individuais, aqueles que compartilha com outras pessoas também pertencentes aos grupos dos quais faz parte. Em minha experiência, por exemplo, meus maiores desafios compartilhados vêm do fato de ser mulher, em uma estrutura social extremamente machista. Essa é a minha grande vulnerabilidade e boa parte das violências que sofro são direcionadas a mim porque o gênero do qual faço parte é alvo de muita violência. >
Às vezes, há várias vulnerabilidades coletivas acumuladas em um ser humano. A isso chamam interseccionalidade. Grosso modo, esse é um conceito que se refere a como diferentes formas de discriminação (também de privilégios, por outro ângulo) se acumulam a depender de raça, gênero, classe social, orientação sexual e outras características que o indivíduo tem.>
No indivíduo que sou, o marcador raça não é uma grande vulnerabilidade. O fato de ser uma parda de pele mais ou menos clara (muitas vezes percebida como “branca”), NA BAHIA, me torna muito menos vulnerável a violências de cunho racista do que pessoas que fazem parte do grupo “pretos”. Entendo perfeitamente, portanto, que, numa perversa “competição de dores relativas ao marcador raça”, eu perderia se concorresse, com essas pessoas, nessa categoria. Acontece que não estou competindo nem concorrendo com ninguém.>
Esse preâmbulo serve precisamente pra afirmar que estou completamente ciente e conheço o caminho pelo qual podem vir interpretações maliciosas deste texto que trata da ambiguidade racial como “algo importante”, mesmo diante das situações de racismo extremo pelas quais ainda passam pessoas inequivocamente pretas. Com alguma ginástica mental, provavelmente me farão acusações. Faz parte. Assumo o risco. De minha parte, declaro - mais uma vez, entre tantas - meu profundo respeito à história do povo negro. Só que há outras histórias que também precisamos respeitar. >
Essas “outras histórias” a que me refiro, que agora começam a ser contadas, são as histórias de 45,3% da população brasileira. São as experiências de mais de 90 milhões de pessoas que, devagarinho, passam a elaborar sobre si de forma mais sofisticada. Que forma é essa? Explico com facilidade porque, finalmente, entendi o meu “lugar de fala” na questão racial. Pela primeira vez na vida, toco nesse tema de um jeito verdadeiramente confortável. Porque não estou dizendo do outro, mas de mim. Então, dá licença, que a parda vai falar.>
Na Bahia, me chamam de branca, mas a família carioca e branquíssima do meu ex-marido jamais me confundiu com um deles. Durante todo o tempo que durou meu casamento, o vovô me chamou de “Pretinha”. Eu achava fofo e até entendi como elogio quando, na véspera da cerimônia de casamento, uma parenta deles me sugeriu que eu não fosse à praia porque a minha cor já estava “ótima”. Depois, quando meu filho nasceu, outro parente disse que precisava conferir se o bebê era branco o suficiente para ser um descendente “autêntico” do lado de lá. Aí, eu entendi perfeitamente em que lugar eu estava naquela estrutura familiar e muitas coisas fizeram sentido, mas essa parte não vem ao caso.>
O que importa aqui é que esses são episódios em que sofri racismo e existem muitos outros. Alguns deles, ao longo de toda a minha vida, envolvem o jeito de o meu corpo ser tratado. Um bom exemplo é o repetido alisamento compulsório dos meus cabelos, praticado por diferentes cabeleireiros. Por isso tomei pavor de qualquer “misturinha para hidratação” que me ofereçam em qualquer salão de beleza. “É só para alinhar os fios”, dizem. “É apenas uma hidratação profunda”, garantem. Mas metiam produtos químicos pra me fazer "combinar mais" com a brancura da qual eu "deveria" me aproximar . >
Deixei de frequentar salões, inclusive (a não ser para corte, eventualmente) há bastante tempo. Justamente porque as chances de fazerem merda com esse cabelo, que não é nem crespo (para o qual existem profissionais especializados) nem liso (para o qual se direciona a maioria dos profissionais), são altíssimas. A sorte é que eu gosto de, de vez em quando, raspar. Aí, eu mesma passo a máquina.>
Isso tudo por um lado: o de, visivelmente, não caber no lugar de branca e ter sempre algo a ser "consertado" ou comentado. Sempre soube que, para os brancos, eu sou - no máximo - uma "branca da Shopee", uma falsificação barata. Ou "pretinha" mesmo, "irremediável". Então, negra? Evidente que também não. Sim, há muitos anos fui convidada (lembram?) pelo papo de "somos todos negros" e fiquei animada. Mas essa onda já passou. >
Então, claro que, por outro lado, já fui expulsa de dentro das cordas de um famoso bloco afro em pleno Carnaval de Salvador e tenho testemunha viva. Nessa semana, liguei pra essa amiga e relembramos de quando o diretor do bloco, em pessoa, nos abordou. Ela, que é negra, podia ficar à vontade. Porém, eu tinha que sair porque, na opinião dele, sou “branca”. Opinião compartilhada por muitas pessoas negras. Outro dia, numa discussão sobre esse mesmo tema, o rapaz negro me disse “você é branca” e as pessoas na sala concordaram plenamente. “Branquela!”, cheguei a escutar.>
Lembro também do espanto de D. Celestina, negra retinta, ao me ver, ainda criança, construir perfeitas tranças nagô na cabeça dela. Terminado o serviço, ela se olhava no espelho e exclamava “não sei onde essa menina branca aprendeu a trançar cabelo de preto!”, antes de ir mostrar pra Mainha. “Você abriria mão do seu privilégio branco?”, me perguntam, frequentemente, amigos negros. >
“É bonito como esse toque bate forte nessas pessoas”, comentou outro amigo, diante de pessoas pretas dançando música afro, me excluindo completamente daquela emoção. Demorei uns minutos explicando que bate fortíssimo em mim também. Lembrando que, mesmo agnóstica, inevitavelmente conheço pontos dos orixás porque, pra mim, é cultural. Que tenho sentimentos fortes ao ouvir atabaques e os motivos desse sentimento - também para mim - ancestral.>
(Que também se manifesta no sabor da receita de bacalhau da minha família, na maniçoba que Mainha faz como ninguém mais, no "s" chiado visivelmente português que herdei de minha avó passando pelo meu pai e em outros tantos espaços do meu imaginário e do meu corpo porque a ancestralidade de pessoas pardas é mesmo plural e essa é a configuração dos meus ancestrais.) >
Você pode estar se perguntando se sofri em algum desses momentos. A resposta é que, sinceramente, não sofri de jeito nenhum. Mas essa sou eu, a minha experiência e a minha cara de pau. Não quer dizer que outras pessoas não sofram, passando por situações parecidas. A vivência da ambiguidade é coletiva entre pardos, não há como negar. Porém, a intensidade é específica e, sobre ela, ainda incidem questões geopolíticas e sociais. O sentimento é sempre individual. No meu caso, não tem dor, exatamente. Mas uma irritação profunda por ter sido feita, por toda a vida, de otária. Por ter sido jogada de um lado pro outro, como uma batata quente, pisando em ovos, nesse “não lugar”. >
Por isso me alegro com os novos ventos. Resolvo a irritação tomando posse da minha última instância ainda dominada por terceiros. Declaro que meu fenótipo tem nome e não é “pretinha” nem “branca”. Eu sou uma mulher parda. Mestiça de negros, indígenas e europeus. Ao mesmo tempo, entrego a culpa pelas migrações forçadas, estupros, assassinatos, epistemicídios e demais violências a quem cometeu. >
Sou descendente explícita de todos, algozes e vítimas. São todos meus ancestrais, mas ao olhar pro meu corpo escolho a felicidade de ver em mim essa mistura genuinamente brasileira. É desse meu “sim lugar” – e não mal encaixada onde acham que devo estar - que compreendo nossas misérias coletivas e trabalho, junto com as mais diversas pessoas, para reparar. Mas não me diluo mais. Sou síntese e não vazio. Sabe?>
Portanto, alegremente volto a me chamar de “morena”, um delicioso apelido para pardas, que eu adorava antes de ser "proibido". É sonoro, é bonito, é isso que sou para fins românticos, poéticos e onde mais eu quiser usar. Agora, não preciso mais desviar da questão “raça” na hora de me descrever para a acessibilidade de pessoas cegas: “Sou Flavia, uma mulher morena de 50 anos. Tenho sardas, cabelos cacheados na altura dos ombros...”. Sai fácil porque é o que sou, de fato. >
Mas, por que isso seria da sua conta, afinal? Você já entendeu. Essa é uma questão para 45,3% da população brasileira, repito o dado. Então, seja bem-vindo a esse novo momento e tome seu lugar. Nos quatro cantos do país, a autodescrição orgulhosa do maior grupo étnico brasileiro acabou de começar. Seguimos todos juntos, assim desejo. Só que, agora, com muito mais gente podendo falar de pertencimento, identidade e quetais. >
(Para quem diz que considerar pardos como um grupo específico e de demandas específicas é ideia "quinta série" do estudo racial, tudo bem. Problema nenhum. Tem muita gente no mundo partindo desse mesmo ponto e a gente vai se encontrar.)>