Até onde o ser humano é capaz de chegar

Premiada peça Tom na Fazenda chega a Salvador, com apresentações no Isba, neste final de semana

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  • Tharsila Prates

Publicado em 28 de agosto de 2023 às 06:00

Armando Babaioff_ FOTO @VICTOR_NOVAES
Armando Babaioff em cena do espetáculo Crédito: Divulgação Victor Novaes

Muito já foi dito sobre o espetáculo Tom na Fazenda, que causou um furor enorme após ser premiado com o Shell e o APCA em 2018 e 2019 e ter grande êxito no Festival d’Avignon, na França, em 2022. Na pandemia, foi possível acompanhar, pelas redes sociais, o sonho do ator e idealizador da montagem, o pernambucano Armando Babaioff, em encenar o texto do canadense Michel Marc Bouchard para um público que só crescia em quantidade, lugares e elogios.

Após seis anos em cartaz, a expectativa agora é de ver a peça em Salvador, nos dias 1º, 2 e 3 de setembro, no Teatro Isba. Até esse domingo (27) restavam ingressos apenas para o dia 1º. Outras sete cidades do Norte e Nordeste do país receberão o elenco, como João Pessoa (PB), São Luís (MA), Recife (PE) e Belém (PA).

Babaioff, 42 anos, conta que está muito feliz em vir à Bahia apresentar a história traduzida e adaptada por ele e que não parou mais de ser exibida desde 2017. Ele faz o protagonista Tom, que vai à fazenda para o funeral do companheiro e é recebido pela família dele – a mãe (Soraya Ravenle) não sabe do relacionamento, e o irmão (Gustavo Rodrigues) - violento e conservador - faz de tudo para esconder a orientação sexual do falecido frente à mãe enlutada. E não poderia faltar a namorada fictícia (Camila Nhary).

"A coisa do Tom na Fazenda, para mim, vai além da peça. Viajar com o espetáculo, fazer essa itinerância é uma maneira muito potente de realizar um intercâmbio e mostrar o que está acontecendo com essa peça, que é importante pro cenário teatral do Brasil. Levar isso adiante é dar a chance ao público de ver um espetáculo brasileiro que está fazendo sucesso lá fora."

Armando Babaioff
Ator

Depois das sessões sempre esgotadas e com fila na porta em Avignon, a peça esteve por 3 semanas no Théâtre Paris-Villette, na capital francesa, em março deste ano, sempre em português, com legendas. No anúncio, o site especializado Le Monde du Ciné afirmou que a versão brasileira superava “de longe” as outras duas apresentadas no local.

Babaioff tenta explicar o sucesso: “A gente fala de teatro em português lá fora como se fosse algo impossível. Mas eles estão sedentos por teatro que não seja o que eles estão fazendo, porque o deles é antigo, é um teatro de cabeça. São cabeças falantes. A gente, não. O brasileiro, o sul-americano coloca o texto no corpo. A gente leva um certo oxigênio para a Europa.”

Ele diz ainda que Tom na Fazenda é um estudo sobre o desejo, a violência, sobre onde o ser humano é capaz de chegar com sua raiva, ódio, mentira e rancor. “E tudo vai resvalando sobre o que está por trás disso, que é a sociedade patriarcal em que a gente vive”, diz o artista, que fez um investimento pessoal na peça, hoje patrocinada pela Vivo.

Os aplausos mais demorados no Brasil, como lembra Babaioff, foram em Ribeirão Preto (SP), onde tinha acabado de acontecer a Feira do Agronegócio. A plateia reconheceu Francis, personagem de Gustavo. Conseguiu identificar um primo, um tio, um irmão, um pai. “Fico muito curioso de como essa peça vai bater em Salvador”, diz.

Gustavo Rodrigues e Camila Nhary -  FOTO @VICTOR_N
Os atores Gustavo Rodrigues e Camila Nhary Crédito: Divulgação Victor Novaes

Imaginário

Somente uma lona empoeirada de argila é estendida no palco. À medida que as tensões surgem entre o publicitário Tom e a família do companheiro, a poeira vai virando lama, num jogo de cena “mais próximo de uma pista de dança, até mesmo de um ringue de boxe, do que das tábuas de um teatro”, diz a crítica do Le Monde. Um teatro de corpo, como sugere Babaioff.

Para o jornal francês, o diretor Rodrigo Portella, 46 anos, conseguiu fazer da brutalidade um gesto estético, sem meias palavras, ternura ou carícia. “A raiva anima este espetáculo de ponta a ponta”, escreveu Joëlle Gayot, na publicação.

Sobre o não cenário, Portella acrescenta que, ao entrar em contato com o texto, ele partiu, como sempre faz, para um processo íntimo de elaboração das possibilidades de interação com o público.

“O que faço é deixar o espectador construir os espaços através da imaginação. Não é para facilitar [ter apenas a lona preta]. Ao contrário, eu dificulto. O espectador não vai encontrar nada pronto. Se são 300 pessoas na plateia, teremos 300 fazendas diferentes”, diz o diretor fluminense, que está morando e estudando na Espanha.

Portella vibra com o fato de montagens diversas, em outras línguas, terem coexistido com o Tom na Fazenda brasileiro e, mesmo assim, a versão em português ser tão aclamada, inclusive pelo próprio dramaturgo canadense, que levou a montagem brasileira ao Festival TransAmériques (FTA), em Montreal, no Canadá. “É o Brasil posto em cena. É o destaque para a nossa formação como artistas, o nosso modo de pensar, de criar, de olhar para o mundo e tratar os temas com visceralidade”, afirma.

Personagens Tom e Francis em embate
Personagens Tom e Francis duelam em cena Crédito: Divulgação Victor Novaes

A temática do espetáculo não é a homofobia, como até o diretor chegou a pensar no início. “Hoje, eu diria que é uma peça sobre dominação, sobre como funciona a dominação patriarcal num ambiente rural, familiar e brasileiro.”

O que ainda surpreende Babaioff, após mais de 350 apresentações, são as histórias contadas pelo público que o procura. Ele cita uma jovem que viu a peça ainda aos 11 anos e, por causa dela, decidiu fazer teatro. E um homem que só falou recentemente para a mãe que era gay, aos 53 anos de idade. Antes, quando ouvia dele que não se casaria com uma mulher, ela fechava os ouvidos com as mãos.

Curiosidades

350 apresentações

60 mil espectadores

6 anos em cartaz

2h20 a duração

2024 - A peça irá para a França, Suíça e Bélgica, de janeiro a maio

2013 - ano de estreia do filme dirigido por Xavier Dolan, adaptado da peça de Bouchard

Prêmios para a peça brasileira - APCA, Shell, Cesgranrio, APTR, Associação de Críticos de Teatro de Quebec e Questão de Crítica.