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Marina Branco
Publicado em 22 de janeiro de 2025 às 05:01
Quando Djavan escreveu “assim que o dia amanheceu lá no mar alto da paixão”, provavelmente não falava sobre vela - mas, de algum jeito, descreveu o amor de Juliana Duque e Rafael Martins, campeões Pan-Americanos de vela que, além de dupla no esporte, são um casal na vida. >
A vela e o mar estiveram perto dos dois desde sempre. Quando Rafael tinha um ano de idade, seu avô já possuía um barco nomeado em homenagem a ele, onde passeavam juntos todo fim de semana. Juliana, por sua vez, cresceu na embarcação dos pais, passeando e vivendo perto do mar. >
Apaixonado pela água, Rafa tentou surfe e mergulho, até que encontrou seu lugar na vela. Juliana foi para a natação e chegou a competir no esporte. De lá, foi surfar e se apaixonou pelo hipismo, até que, em uma colônia de férias, conheceu mergulho e remo e aprendeu a velejar. Nunca mais parou. >
Cada um em seu caminho, os dois continuaram crescendo no esporte. Rafa foi para o laser, um barco individual para competição. De lá, passou para a classe Sniper, onde é especialista. Foi nessa época em que ele ouviu falar de uma menina que disputava regatas - as corridas de vela - no Optimist, para velejadores de até 15 anos. >
Aos 16 anos, a menina prodígio foi velejar no Sniper, e os dois se conheceram. Os adversários se tornaram amigos, e passaram a dividir a vida um com o outro. >
Os dois se encontraram nas classes mistas dos campeonatos Baiano, Norte-Nordeste, Brasileiro e Sul-Americano. “Eu ganhava um, ele ganhava outro. A gente sempre disputava, trocava muito. Na Vela Match Race, que teve aqui na Bahia, fomos concorrentes e subimos no pódio, ele em primeiro e eu em segundo”, conta Juliana.>
Com o tempo, a paixão pela vela aumentou - e a que surgiu entre os dois também. Três anos depois, começaram a namorar e, após mais dois anos, a velejar juntos. O parceiro de Juliana na vela na época era engenheiro elétrico e não tinha tempo para treinar tanto quanto ela gostaria. Do lado de Rafael, uma dentista, também ocupada. Assim, os dois começaram a treinar juntos e encontraram ali o resto de suas vidas.>
Na época, Rafael trabalhava como empresário de jogadores de futebol, após se formar em administração. Foi na dupla com Juliana que ele viu a possibilidade de viver da vela, em um futuro que sonhava para si. >
“Quando era empresário, me via em reuniões, jantares, e sabia que não queria estar ali. Hoje não existe isso. No pior dia que tem, chuvoso, frio, ainda assim a gente está fazendo o que gosta, o que a gente ama. Lógico que, quando passa a ser trabalho, aquele encanto todo perde um pouquinho - mas, ainda assim, deve ter uns três anos que eu não boto um paletó na minha vida, e é maravilhoso”, conta. >
Já Juliana sempre soube que o mar era o seu lugar, mas além dele, a competição: “Eu comecei a velejar porque, no final das contas, eu gosto de estar perto do mar. Mas sempre fui muito competitiva. Então, olhando para trás, eu sempre fiz de forma profissional”.>
Juntos, os dois começaram a encontrar sua dinâmica no mar, especialmente para superar o desafio da posição que cada um ocuparia. Isso porque, na vela, existem duas posições - timoneiro e proeiro. O timoneiro vai no “volante” do barco, enquanto o proeiro regula as velas. E os dois trabalhavam no leme.>
Assim, no primeiro ano, decidiram começar com Ju na proa, e trocar a cada ano. Esse sistema conquistou o primeiro Sul-Americano da dupla, até que chegou a notícia de que o Pan-Americano seria misto. Foi então que Rafa se assentou na proa, e Juliana ficou no leme, onde alcançaram o maior sucesso. >
A união de amor e esporte deu certo e cativou o mundo. “No Sul-Americano de 2016, primeiro campeonato grande que a gente ganhou, nós subimos no pódio e espontaneamente demos um beijo na boca. Tiraram uma foto e aquilo foi para o jornal. Depois disso, quando a gente ganha uma regata, todos os fotógrafos pedem o beijinho! Foi feito uma vez de forma espontânea e agora, ganhou uma regata, beijinho!”.>
Em 2017, veio a vitória no Brasileiro e no Norte-Nordeste, além do segundo lugar no Hemisfério Ocidental e no Sul-Americano. No ano seguinte, uma classificatória nada fácil para o Pan-Americano, onde Juliana é três vezes campeã feminina.>
“É mais difícil às vezes se classificar para o próprio Pan-Americano do que se sair bem lá no resultado, por ser tão difícil o funil no Brasil. Foi uma regata tensa. Quando cruzamos a linha de chegada, vinha uma tempestade enorme. Se ela chegasse dez minutos antes, a regata poderia ter sido anulada. Conseguimos voltar para terra a tempo, mas os barcos que vieram atrás já chegaram quebrados”, lembra Rafa.>
No Pan, veio a tão sonhada medalha de bronze. “Foi o mais importante, o que virou a chave do amador para o profissional. Com o bronze do Pan-Americano que a gente conseguiu o nosso primeiro patrocínio e conseguiu viver da vela”, contam.>
Onze anos de relacionamento, nove de dupla na vela. Uma vida inteira dividida enquanto casal e colegas de equipe. Juntos, Ju e Rafa navegaram cada lado bom e ruim de trabalhar com o parceiro de vida, e são a prova de que a sintonia fora da água pode ajudar dentro dela. >
“Eu sou mais emoção, Ju é mais razão. A gente se equilibra assim. Ter o relacionamento é muito positivo por termos essa intimidade, essa sintonia não só dentro da água, como fora água também. Muitas vezes, Ju não precisa nem falar o que ela vai fazer, eu já sei, por tanto tempo velejando junto”, opina Rafa.>
“Botando um contraponto a isso, essa intimidade faz com que um cobre muito o outro. Como a gente tem tanta intimidade, a gente cobra do outro mais do que se fosse uma pessoa menos próxima. Isso, às vezes, causa brigas, confusões. Mas o saldo de velejar junto é sempre positivo, a gente sempre consegue voltar em terra e estar bem”, complementa.>
'Os Roedores'>
A história do casal está marcada em todos os lugares, e aparece até no barco dos dois. Desde criancinha, Juliana era chamada de Rata por ter “orelha de abano”, enquanto Rafael ouvia que tinha “cara de rato”. Quando começaram a namorar, se tornaram “Os Roedores”, apelido escrito no veleiro que dividem.>
Assim como o amor ajuda no trabalho, Juliana sente que o contrário também acontece, com a proximidade que vivem no dia a dia: “Eu adoro essa vida que a gente tem, de estar 100% juntos. Às vezes, a gente se separa por duas, três horas, ele sai, eu saio, dá uma saudade retada. Quando ele tem que viajar, correr em outras tripulações, trabalhando, é uma semana, e me dá uma saudade que parece que eu não vou aguentar”.>
Mas, se o casal está sempre perto, a vela também está. Eles até tentaram só falar do esporte até certo horário, mas o combinado sempre é ultrapassado. Na hora do descanso, assistem vídeos de regatas. Nas férias, vão velejar com os pais. Ao saírem com amigos, quase todos velejadores - já que Juliana se dedicou à vela sua vida inteira -, o assunto é o mesmo. >
“Eu nem tenho muita experiência com outras coisas assim para conversar. Eu vou pra outra conversa, sai um pouquinho, um minuto de outra conversa, e volta pra vela. A gente fala de vela o dia inteiro, a gente vive vela o dia inteiro, mas não quer dizer que a gente está o dia inteiro cansado trabalhando. Às vezes, é de forma prazerosa”, conta Ju.>
O lado bom da intensidade e exclusividade temporal que a profissão exige é a rotina diferente que ela proporciona, especialmente longe da tecnologia que rege a vida hoje em dia. >
“Hoje, o celular é um problema para muita gente, o excesso de uso de tela. Às vezes, a gente passa seis horas no clube, mexendo no barco, treinando, e quatro horas na água. Quando vê, você passou o dia sem celular. Hoje, eu vejo isso como um luxo, principalmente para as crianças. Acho que é um dos esportes que mais tira da tela e te deixa perto da natureza”, opina Juliana.>
O futuro, agora, aponta para o auge de todo atleta - a Olimpíada. Com Los Angeles-2028 cada vez mais perto, o casal começa a sonhar com um ciclo olímpico, e a se preparar para ele. >
Entre Portugal, Espanha e França, as viagens dos dois já estão planejadas para competir em todo o circuito mundial, cobrindo toda chance de classificação possível. “O campeonato mundial foi o que definiu o melhor brasileiro para ir para as Olimpíadas. A Confederação não falou se esse ciclo vai ser dessa forma. Por isso é importante estar constante, porque se falar assim, vai ser uma média dos quatro anos, a gente está lá treinando”, comentam. >
Apesar da dedicação, o desafio inicial é garantir a presença brasileira na Olimpíada. “Não tem muitos barcos no Brasil. Nossa maior missão é classificar o país. Não é um brasileiro contra o outro. É ter um resultado bom no mundo pra conseguir a vaga do nosso país, e só depois disso ‘brigar’ entre os brasileiros, definir quem vai”. >
Mas, como todo atleta, o sonho é chegar lá, fazer uma medal race - ficar no top 10 da categoria - e ter muita história para contar. “Acho massa a ideia da gente como casal ir para a Olimpíada, sabe? A gente uma hora vai ter filho e vai poder mostrar a história que a gente fez, me atrai essa ideia”, diz Juliana. >
A dificuldade maior fica por conta do apoio ao esporte no Brasil. Com quase um milhão de custos ao ano com a vela, a dupla trabalha dando aula, representando uma veleria que vende barcos, velejando profissionalmente e dando treinamentos (as ‘clínicas’ de vela) no Yacht Clube da Bahia para completar o que os patrocínios e o apoio que recebem do programa FazAtleta não conseguem pagar. >
Em termos de técnico, não há o clássico fixo. Ficam com uma em Salvador e um outro no Rio de Janeiro, para competições internacionais. E todo o resto é com eles. “Eu costumo dizer que a gente é uma empresa, porque somos agência de viagem - já que temos que comprar nossas passagens e fazer nosso Airbnb ou nosso hotel -, comprar nosso material, fazer nossa comida nas viagens, contratar o treinador...”, conta Juliana.>
Mas, junto à dificuldade de ser atleta no Brasil, vem as alegrias de ser velejador em Salvador. Com a temperatura quente, o litoral extenso e as oscilações de tempo, a cidade é um paraíso para quem pratica o esporte.>
“Nada é comparável com essa Baía de Todos os Santos da gente. Salvador é muito boa para treinar justamente por ser imprevisível. Aqui a gente passa, no máximo, uma semana (não consecutiva) sem treinar no ano. Tem lugar que a gente vai que a gente passa 20 dias nesse lugar e em15 não deu para velejar porque entrou tempestade, acabou o vento”. >
“O Rio de Janeiro também tem muito barco, correnteza entrando e saindo, vento oscilando bastante. A cada 50 metros que você anda, às vezes está enchendo e inverte, então você tem que conseguir olhar bem para a água e enxergar a maré. É legal e é bem difícil também”.>
Assim os dois enfrentam a imprevisibilidade, um dos maiores obstáculos na vela, que exige a sorte além da habilidade. Com mudanças de tempo, marés ou vento, toda a regata pode mudar, sem que o resultado seja controlado pelo desempenho dos atletas. >
É possível até que o lixo atrapalhe. Quando um saco plástico vem do mar e se prende ao barco, pode levar um velejador que está em primeiro lugar ao último na regata - seja por retardar a vela, seja por fazer com que o atleta pare para remover o lixo.>
“Nosso esporte é dinâmico, um dia não é igual ao outro, então a gente sempre começa do zero, tem que pensar cada dia de uma nova forma. É bastante físico, mas ele é muito mental também. A todo momento você tem que estar com a cabeça funcionando, ligado, atento e com a serenidade para tomar boas decisões. Esse é o charme do nosso esporte”, opinam. >
Entre o esporte e o relacionamento, Juliana e Rafael escrevem o futuro de suas vidas e da vela brasileira, prometendo que “os roedores” ainda aparecerão em muitos mares por aí. >