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Maysa Polcri
Publicado em 8 de maio de 2025 às 05:00
Um professor ficou cinco dias afastado do trabalho após receber o diagnóstico de dengue, em janeiro deste ano. O atestado apresentado por ele teria sido emitido no Pronto de Atendimento Dr. Orlando Imbassahy, no Bairro da Paz. O homem, no entanto, não foi atendido no local e nem estava doente. O documento falsificado custou R$ 100 e integra um esquema criminoso de vendas de atestados falsos de Unidades de Pronto Atendimento (Upas) da capital. >
Nesta semana, a segunda instância do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia (TRT-BA) manteve a justa causa aplicada a uma ex-funcionária de uma doceria no bairro da Graça. Ela estava grávida quando apresentou sete atestados médicos supostamente emitidos na UPA de San Martin. Apenas um deles era verdadeiro. Mesmo fornecendo documentos falsos, ela recorreu contra a justa causa - e perdeu o processo no TRT.>
O elo entre os dois casos é um esquema de venda de atestados médicos falsos na capital baiana. Uma conversa rápida em um aplicativo de mensagens garante as folgas do trabalho. Os documentos falsificados são vendidos a partir de R$ 30, para um dia de afastamento, e custam até R$ 100, para um período de cinco a 14 dias. >
Os atestados trazem as insígnias da UPA, Prefeitura de Salvador e do Sistema Único de Saúde (SUS), apesar de os "pacientes" sequer terem pisado nesses estabelecimentos. Assinaturas de médicos verdadeiros também são falsificadas para garantir maior "autenticidade" aos documentos. Falsificar atestado médico é crime, e os trabalhadores que utilizarem podem ser demitidos por justa causa. >
A possibilidade de envolvimento de funcionários da UPA no esquema ilegal não é descartada. Quem explica é a advogada Juliana Costa Pinto, especialista em Direito do Trabalho. Em maio do ano passado, ela foi procurada por uma unidade de ensino de Salvador, que desconfiou de atestados médicos apresentados por um funcionário do estabelecimento. >
A empresa buscou as duas UPAs citadas pelo funcionário, a do Vale dos Barris e da Lapinha, e descobriu que o médico citado no atestado nunca trabalhou em nenhuma das unidades de saúde. Trata-se de um cardiologista com registro ativo no Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb). >
A advogada Juliana Costa Pinto suspeita que funcionários de UPAs possam ter utilizado papéis timbrados para produzir atestados falsos, que são vendidos pelo WhatsApp. Os documentos podem tanto ser fornecidos impressos ou por mensagem, em formato PDF. >
"Existe uma diferença entre os atestados médicos, que determinam afastamento do trabalho, e atestados de comparecimento, que não dão direito a falta. Nas estruturas da UPAs, não são médicos que costumam assinar os atestados de comparecimento, então é possível que o esquema tenha começado com pessoas que têm acesso a esses papéis timbrados", detalha a advogada. >
O presidente do Cremeb, Otávio Marambaia, detalha: "Atestado de comparecimento é apenas a comprovação que a pessoa esteve no local para realizar consulta ou um exame complementar. Pode ser fornecido pela área administrativa, de preferência". >
Procurado para responder se o atestado era verdadeiro ou não, o coordenador médico da UPA Vale dos Barris emitiu uma declaração informando que o médico citado no documento sequer integra o quadro de profissionais da unidade. "Informaremos também que o documento apresentado não condiz com os padrões impressos dessa unidade de saúde", informou o coordenador Abevailton Miranda da Silva, em maio de 2024. >
A Secretaria Municipal da Saúde de Salvador (SMS) informou, em nota, que repudia qualquer prática contrária a ética profissional e a legalidade. "A pasta não corrobora ou compactua com condutas ilícitas, uma vez que adulteração de atestados médicos é crime enquadrado no Código Penal Brasileiro", pontuou. >
"A SMS reitera seu compromisso com a transparência, a ética no serviço público e o respeito à população, e está à disposição de órgãos competentes para colaborar em processos de investigação desse tipo de violação", completa a pasta. A reportagem entrou em contato com a Polícia Civil da Bahia, que não se manifestou se investiga a emissão de atestados médicos falsos de postos de saúde.>
A adulteração de atestado médico é crime e pode render prisão de até seis anos aos infratores. Na esfera trabalhista, funcionários que apresentarem documentos falsificados podem ser demitidos por justa causa. Caso da grávida que pediu afastamento sete vezes do trabalho e foi dispensada sem direito às verbas rescisórias. >
"A justa causa pode ser aplicada devido ao ato de improbidade. Existe um senso comum em que as pessoas acreditam que a demissão por justa causa não vai ser mantida na Justiça do Trabalho, mas isso é errado. Direito é prova, e a demissão precisa ter uma prova robusta", avalia a advogada Juliana Costa Pinto. O excesso de atestados verdadeiros não é, por si só, justificativa de justa causa. >
Por isso, em caso de desconfiança, os empregadores devem investigar se os atestados médicos fornecidos são verdadeiros ou não. "O empregado não pode ser penalizado por suspeita. Antes da demissão, o empregador deve buscar as instituições adequadas para saber a origem do atestado", completa Juliana Costa Pinto. Podem ser buscadas as unidades de saúde e o Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb).>
Uma reportagem do CORREIO revelou, em novembro do ano passado, que atestados médicos são vendidos por valores a partir de R$ 29 na internet. O preço varia conforme a quantidade de dias de afastamento e do site utilizado para a compra. Ao menos 15 sites prometem enviar o documento em até 30 minutos para os compradores. Eles não tinham relação com unidades de saúde de Salvador. >
Nos primeiros cinco meses deste ano, o Cremeb recebeu 1.025 solicitações de verificação de atestados médicos. Desses, 120 eram falsos. O Conselho ressalta que os nomes de médicos e seus números de registros podem ser verificados no site.>
O médico Otávio Marambaia, presidente do Cremeb, avalia os impactos negativos da circulação de documentos falsificados. "O atestado médico falso causa prejuízos econômicos, sociais e epidemiológicos. Esse último podendo causar impactos nas políticas públicas por influenciar as estatísticas de prevalência das doenças", afirma. >
Para tentar coibir o problema, o Conselho Federal de Medicina lançou a plataforma CFM, que teve a obrigatoriedade suspensa pela Justiça em novembro do ano passado. A plataforma foi criada para ser o sistema oficial e obrigatório para emissão e gerenciamento de atestados médicos, físicos ou digitais, inclusive de saúde ocupacional. A Justiça avaliou que cabe ao Ministério da Saúde e à Anvisa criar normas sobre validação dos documentos eletrônicos assinados por profissionais de saúde.
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Mesmo sob o risco de serem demitidos, funcionários compram os atestados para faltar ao trabalho sem serem punidos. Para o professor que comprou o documento falso em janeiro, com o diagnóstico de dengue, o risco compensa. "A pessoa que vende o atestado, inclusive, indica que quem compre imprima o documento em casa, corte as bordas do papel e amasse, para ficar com mais cara de verdadeiro", diz. O cliente revela ainda que já indicou o serviço para colegas de trabalho. >
Veja a nota da Secretaria de Saúde na íntegra:>
A Secretaria Municipal da Saúde de Salvador reforça o compromisso com a transparência e lisura da prestação de serviços aos pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) nas unidades de urgência municipais, e repudia veementemente qualquer prática que vá contra a ética profissional e a legalidade. >
A pasta não corrobora ou compactua com condutas ilícitas, uma vez que adulteração de atestados médicos é crime enquadrado no Código Penal Brasileiro.>
Destaca ainda que a autenticidade do documento referido pela reportagem pode ser verificada no site do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb).>
Em tempo, a SMS reitera seu compromisso com a transparência, a ética no serviço público e o respeito à população, e está à disposição de órgãos competentes para colaborar em processos de investigação desse tipo de violação.>