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Monique Lobo
Publicado em 12 de maio de 2025 às 06:00
Escritora, professora, filósofa e ativista social. Djamila Ribeiro, 44 anos, empilha funções como empilha projetos. É autora de best-sellers como "Lugar de fala" (2017), "Quem tem medo do Feminismo Negro?" (2018), "Pequeno manual antirracista" (2019), que lhe conferiu o prêmio Jabuti de Ciências Humanas, e "Cartas para minha avó" (2021), que já venderam, juntos, mais de um milhão de exemplares. >
É também coordenadora do projeto Feminismos Plurais, professora convidada da New York University (NYU), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e do Massachusetts Institute of Technology (MIT), é colunista do jornal Folha de São Paulo, imortal da Academia Paulista de Letras, conselheira da Fundação Padre Anchieta, da Pinacoteca de São Paulo e do Fundo Patrimonial da USP, filha de Oxóssi e mãe de Thulane. Ufa!>
Sabe-se lá como, encontrou um tempo em meio a essa agenda robusta para vir a Salvador onde, na última quarta-feira (7), palestrou na aula inaugural da Faculdade Sebrae, que aconteceu no auditório da entidade, no Costa Azul. No mesmo dia, concedeu uma entrevista exclusiva ao CORREIO. >
Coincidiu que a vinda de Djamila, referência no ativismo negro, aconteceu logo após uma professora negra ter a sua contratação cancelada pela Justiça baiana, mesmo depois de passar em um concurso na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Nesta entrevista, a escritora paulistana falou sobre esse episódio e sobre outros obstáculos comuns aos intelectuais negros. >
Ela também falou sobre a discussão em torno do conceito "parditude" e os questionamentos do identitarismo. Além disso, antecipou quais serão seus próximos projetos.>
CORREIO - Você participou da aula inaugural da Faculdade Sebrae, mas os espaços de pesquisa ainda são lugares de disputa para a população negra. Recentemente, uma professora negra baiana, aprovada pela cota na Ufba, teve a contratação cancelada pela Justiça após outra candidata branca questionar a admissão. Por que esse acesso, mesmo com as políticas de cotas, ainda é tão difícil? >
Djamila Ribeiro - É importante dizer que as políticas de cotas já estão consolidadas no nosso país, fruto de muita luta dos movimentos sociais. A gente tem pesquisas mostrando quanto essas políticas foram importantes no nosso país, quanto aumentou o número de pessoas negras, que historicamente foram excluídas desse espaço, e que cotistas têm desempenho igual ou superior a não cotistas. >
E quando essas cotas vão também para a questão do trabalho, de contratação, ainda gera uma série de incômodos na sociedade. Mas acho que é importante, também, a gente entender que a luta nunca é necessariamente a conquista de um direito, é algo que fica permanente. A gente tem que estar sempre atento para a manutenção desses direitos. >
E, no caso dessa professora que eu acompanhei bastante, essa candidata branca não está entendendo a importância dessa política, porque é uma política que já foi implementada no nosso país, é uma lei. Então, se é uma lei, tem que ser cumprida. >
E a gente está falando de um histórico de invisibilidade de pessoas negras nesse lugar. Quantas professoras negras tem a Ufba em um estado como a Bahia? Em uma cidade como Salvador, majoritariamente negra? Então, a gente está falando de uma importância, da garantia de um direito, de uma política de ação afirmativa que visa combater essas desigualdades históricas.>
Uma pena que a professora negra teve que passar por tudo isso, mas que bom, que a lei foi cumprida e ela teve o seu direito assegurado. >
Este tipo de obstáculo não é o único enfrentado por intelectuais negros. A escritora baiana Carla Akotirene reclamou recentemente de pessoas que criticam seus textos por serem 'rebuscados'. Barbara Carine, também escritora baiana, falou sobre a crítica feita à Escola Maria Felipa, criada por ela com o propósito antirracista, por cobrar mensalidade e não ser uma "instituição de caridade". Como você avalia essa resistência e desvalorização à produção intelectual negra? >
Essa resistência é com intelectuais negros no geral, mas acaba sendo mais gritante quando a gente está em um estado como a Bahia. Eu conheço bem Carla Akotirene, publiquei dois livros dela no meu selo editorial, justamente por compreender, como uma pesquisadora sudestina, a importância de visibilizar autoras que são aqui do Nordeste. >
Mas, a gente sabe ainda desses desafios. Porque, a partir do momento que somos mulheres negras, somos desautorizadas dentro desse espaço e recebemos muito mais desconfiança e descrédito nesses lugares. E é algo que precisa ser dito sempre. E não é porque a Carla é uma doutora pela Ufba que ela não passa por todos esses processos de tentativa de deslegitimação.>
Acho que a gente não tem outro caminho a não ser enfrentar isso coletivamente, e dizer que a cara da universidade mudou e tem que mudar, a cara do que as pessoas entendem como intelectual no Brasil é uma cara de mulher feminina e negra e que nós estamos nesse espaço. Temos que continuar trazendo as nossas vozes, trazendo as nossas produções intelectuais e continuar cobrando mais espaços especificamente para intelectuais que vêm do Nordeste, que a gente sabe que tem um desafio ainda maior de ter o reconhecimento público de seu trabalho no resto do Brasil. >
Recentemente, surgiu um novo termo no debate racial brasileiro: parditude. Segundo a criadora do conceito, Beatriz Bueno, a intenção é romper com a hipodescendência e avançar no debate. Como você vê esse novo conceito? >
É importante dizer que o movimento negro não é homogêneo, nunca foi. Durante a história do movimento negro sempre existiram visões diferentes, sempre existiram intelectuais que partiam de outros lugares. Não é novidade essa diferença, porque a população negra ela é diversa. >
Talvez a geração mais nova fique um pouco assustada quando vê esse tipo de debate, esse tipo de controvérsia dentro do movimento, pelo próprio desconhecimento dessa história. >
O que eu penso, eu não estou tão a par do que a pesquisadora propõe, mas eu acho que é importante respeitar tudo o que já foi construído coletivamente pelos movimentos, respeitar tudo o que já foi implementado. Porque isso é fruto de luta histórica e de discussão também pública. >
Mas eu também não sou contra abrir para o debate, desde que seja um bom debate. Eu acho que é importante que a gente também consiga entender o que essa nova geração está trazendo. E, em vez de simplesmente só dizer que é bobagem, eu também acho importante que elas tenham o direito a trazer novas perspectivas, independente da gente concordar ou não. Porque eu discordo de muita coisa que vem desse conceito, eu sou muito crítica a muitas coisas, mas eu também não sou fechada a ouvir, a debater, porque eu acho que é importante que a gente também escute o que essas vozes estão dizendo. >
Outra questão que também tem movimentado o debate é a crítica ao identitarismo. Essa crítica tem base, sobretudo, nas situações de cancelamento e, também, na premissa de que os movimentos sociais podem se fechar em nichos. É comum, inclusive, o uso deturpado do conceito de "lugar de fala". Como você enxerga essa tensão relacionada ao identitarismo? >
Eu acho que o identitarismo é um espantalho argumentativo, porque as pessoas brancas esquecem que elas também têm identidade, branquitude é identidade. Homens esquecem que masculinidade é identidade. Então, identitários são sempre os outros, porque há essa insistência em se ver como um sujeito universal. >
Eu acho que é, na verdade, mais um espantalho para tentar, de alguma maneira, desmobilizar todos os debates que a gente está fazendo num momento em que se cresceu o número de pessoas negras na academia, o número de pessoas negras publicando livros. >
Então, isso surge um incômodo para aquelas vozes que sempre foram hegemônicas e que nunca se viram racializadas. Porque o sujeito branco não se racializa, ele não entende que ele também parte de um lugar social marcado pela sua racialidade.>
Agora, claro que em todos os movimentos existem exageros, existem equívocos, como o próprio conceito de "lugar de fala" que é deturpado, que as pessoas usam como interdito: "cala a boca, no seu lugar de fala". Que eu sou absolutamente contra, porque todo mundo pode e deve debater sobre todos os assuntos. A diferença é que as pessoas vão falar de lugares diferentes.>
Uma pessoa branca vai falar de raça de um lugar diferente do meu, mas é fundamental que ela fale também, porque ela vive nessa sociedade e ela parte de um lugar em que ela se beneficia também dessa estrutura. >
Então, acho que me incomoda quando fica nessa discussão equivocada, fechada. A gente está discutindo um projeto de sociedade, significa que toda a sociedade pode e deve contribuir para esse debate.>
E acho que às vezes as pessoas esquecem que não é só ficar na rede social, que a gente tem que estudar, que a gente tem que ler os autores que vieram antes. Senão acaba ficando uma coisa de ego e que dificulta que se criem essas pontes de diálogo. >
Então, não concordo com esse conceito de identitarismo, acho que é uma baboseira que não se sustenta. Porém, por outro lado, também sou crítica às pessoas que ficam falando para si mesmas.>
Seu trabalho tem dado muitos frutos, além de livros entre os mais vendidos, é a primeira brasileira a integrar programa que homenageia Martin Luther King no MIT, e uma referência nas discussões raciais no Brasil e no mundo. Em qual novo projeto em que está trabalhando e como lida com a expectativa constante sobre o seu trabalho?>
Acho que estou numa fase da vida que eu tenho trabalhado para não lidar com essas expectativas, porque senão a gente acaba só atendendo o que o outro deseja de nós e a gente acaba não olhando para si.>
E acho que como mulheres, sobretudo mulheres negras, como a gente está num lugar que não é esperado para nós, a gente precisa cuidar muito da nossa saúde mental, cuidar muito de entender quem a gente é para não cair nessas armadilhas de ser atendente de demandas. Então, para mim foi um processo chegar nesse momento maduro da minha trajetória. >
Tenho como projeto, agora, o lançamento da versão ampliada do "Lugar de fala". A coleção Feminismos Plurais continua agora, sobretudo no segundo semestre, vamos publicar novos títulos. >
E, em setembro, também vou para os Estados Unidos mais uma vez. Semestre passado eu morei em Nova York, dando aula na Universidade de Nova York. E, agora, retorno para dar aula na MIT. O que para mim é uma conquista muito importante, de chegar como uma intelectual brasileira nesse lugar, uma intelectual que produz em português brasileiro e entendendo também o nosso lugar como brasileira, de não se colocar menor em relação aos americanos. >
Um dos meus objetivos é chegar com uma bibliografia majoritariamente brasileira, apresentando os tantos autores e autoras que temos no nosso Brasil e que são fundamentais para a discussão racial. Porque os estadunidenses colocam como a América Negra, a Black America, mas não tem como falar de América Negra ignorando a maior diáspora negra do mundo que é o Brasil. >