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Maria Raquel Brito
Publicado em 7 de outubro de 2025 às 06:00
A estudante Erika Conceição, de 20 anos, planejou a última terça-feira (31) como qualquer outra. Se arrumar, ir para o estágio, seguir para a universidade, voltar para casa. A rotina foi interrompida por um motivo fora do seu controle: a suspensão temporária do transporte público em Pau da Lima, bairro onde mora, por conta da insegurança na região após a morte do adolescente Caíque dos Santos Reis durante uma ação policial. >
Na terça-feira, ela perdeu todos os compromissos. No dia seguinte, precisou recorrer às motos por aplicativo para ir e voltar. Desde então, teve que pensar em outras saídas para reduzir o prejuízo. Foi assim até a manhã desta segunda-feira (6), quando os ônibus voltaram a circular em Pau da Lima e nas regiões de Colina Azul e São Marcos – onde haviam parado pelo mesmo motivo. >
“Isso nos prejudica bastante, porque altera a rotina e impede muitas pessoas de saírem do bairro. Temos que andar para um ponto que não é tão próximo, esse ponto enche, os ônibus e metrôs enchem. A gente chega muito mais atrasado e volta muito mais cedo para não ficar tanto tempo andando na rua à noite”, conta Erika. >
Essa está longe de ser a única vez que bairros de Salvador ficam sem transporte público por conta da violência este ano. Entre janeiro e agosto, foram 73 ocorrências em 33 bairros da capital, conforme dados da Secretaria Municipal de Mobilidade (Semob). O número representa quase o dobro do mesmo período de 2024, quando foram registradas 38 suspensões temporárias. >
Ônibus param de circular por conta da violência
Entre os lugares mais afetados, estão Tancredo Neves (7 interrupções), Engenho Velho da Federação (6), Mussurunga (5), Vale das Pedrinhas (5) e Vila Verde (5). Em setembro, pelo menos quatro outras suspensões foram noticiadas. >
De acordo com a secretaria, o serviço é interrompido quando há “alguma situação que possa comprometer o atendimento seguro à localidade, levando em consideração a segurança dos usuários, da dupla que opera o veículo e do próprio ônibus”. Geralmente, quem bate o martelo é um grupo de crise composto por representantes da secretaria, da Polícia Militar, de empresas de ônibus e do Sindicato dos Rodoviários da Bahia. >
Às vezes, porém, os próprios motoristas sentem a necessidade de parar. Roque Messias, de 46 anos, sabe bem disso. Rodoviário há 16 anos, ele afirma que, por mais que os rodoviários entendam o compromisso com a sociedade, precisam também preservar a integridade física.>
“Não podemos esperar as coisas piorarem para fazermos uma escolha que pode representar uma queima de ônibus ou até a morte de um motorista, de um cobrador, ou mesmo de um passageiro. Nós agimos e depois comunicamos aos órgãos competentes, empresa, sindicato, Semob e a polícia, se essa já não estiver no local”, diz.>
Em 2024, a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas produziu, em parceria com o Observatório da Mobilidade de Salvador e o Instituto Fogo Cruzado, um levantamento sobre como a segurança pública afetou o transporte público em Salvador. Foram 85 interrupções no ano passado.>
A pesquisa não tem dados atualizados, mas a percepção do impacto da violência na mobilidade urbana se mantém. Segundo Dudu Ribeiro, diretor da Iniciativa Negra, o exercício que as três organizações têm feito é o de demonstrar que, quando existe esse impacto, é necessário que a política de transporte faça parte da elaboração e das sugestões do campo da segurança.>
“A gente se move nesse tema, muitas vezes, no senso comum, a partir da ação das polícias, mas é preciso pensar que segurança pública é a proteção prioritária da vida e, para o bom exercício da vida, a gente precisa circular. A política de segurança pública tem afetado a capacidade e a possibilidade das pessoas se moverem e, por isso, [a mobilidade] deve ser incluída nos debates sobre segurança, na elaboração das políticas, das soluções”, diz.>
Daniel Caribé, coordenador do Observatório da Mobilidade, concorda. Doutor em Arquitetura e Urbanismo, ele defende que os problemas estão conectados. Dessa maneira, quando a insegurança poda o direito ao transporte, isso impacta, consequentemente, em outros direitos sociais: ao trabalho, à saúde, ao lazer. >
Para Caribé, é preciso que a prefeitura da capital e o Governo do Estado estejam articulados para que os moradores não sejam duplamente prejudicados. “A população já está sendo penalizada pelo conflito e pela suspensão do transporte público. Ela não pode ser penalizada duas vezes. O conflito armado não deve acontecer, mas já que aconteceu, é preciso garantir que o transporte público não seja interrompido. E isso vai deixar de acontecer quando os rodoviários se sentirem seguros para trabalhar.”>
Roque Messias é prova de que essa segurança parece uma realidade cada vez mais distante. “A gente sai de casa sem a certeza que vai voltar e ver a família. A insegurança faz parte do dia-a-dia, com isso a gente vem cada dia mais adoecendo. A categoria que mais adoece no Brasil é a de rodoviários, só no mês de setembro perdemos mais de cinco colegas de morte repentinas”, diz.>