100 dias de solidão: como aqueles que moram sozinhos estão encarando o isolamento

Quarentenados solitários relatam sentir falta de amizades, abraços e sexo, mas dizem valorizar aprendizados e amores sentidos à distância

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 26 de junho de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Acervo pessoal

A verdade é que uma gigantesca solidão pesa sobre as mentes de qualquer ser humano, seja em tempos de guerra, vírus ou bonanças. Quem leu o clássico de García Márquez descobre que, na condição de reféns da morte, o estado de se ver sozinho vai muito além dos Buendía-Iguarán, personagens da fictícia Macondo, do livro Cem Anos de Solidão, que tem como pano de fundo a Guerra dos Mil Dias, na Colômbia. Perto de uma encarnação inteira convivendo com a finitude da vida, o que são cem dias de solidão completados nessa sexta-feira (26), desde que as autoridades determinaram o início da quarentena pelo coronavírus? 

Os que vivem sozinhos e estão seguindo à risca o isolamento social têm relatos incrivelmente particulares. Nas páginas a seguir, percebe-se que eles sentem falta de tudo. Desde a rotina do trabalho (será?) até o carinhoso abraço da mãe, ainda que se tenha 30 anos nas costas, como o geólogo e professor universitário Henrique Assumpção: “Desde março que só vejo minha mãe por vídeochamadas. E é o que mais me dói”. Nos cem dias sem, literalmente, colocar os pés na calçada, a advogada Camille Lins, 35, também não deixou ninguém entrar em sua casa.  Nem amigo, nem ficante, nem peguete. Correu de propostas tentadoras de furar o isolamento, ainda que sinta muita falta de sexo: “Não há cheiro, nem gosto ou gozo do outro”. Furar isolamento, diz ela, “definitivamente não dá tesão”.  

Mesmo agoniadas, essas pessoas vivem alegrias e sonhos. Mesmo que esses sonhos sejam como o da assistente social Luciana Pinto, 48. Natural de Recife, mora só em Salvador desde 2009. Nessa quarentena, Luciana tem o desejo que se realize o que outro escritor, José Saramago, narrou em seu Intermitências da Morte: "que por pelo menos um dia a morte não venha buscar ninguém". Realidade muito distante para um país que ainda contabiliza cerca de 1 mil desaparecimentos diários.  

Dendicasa Agora, se não está fácil pra ninguém ficar sozinho no isolamento, imagina para o produtor cultural Welbert Ramos, 41, que está vivendo uma quarentena dentro da quarentena. Ele já estava “dendicasa” desde 1º de janeiro por motivos pessoais e profissionais. “Sou atleta amador e, numa corrida de rua, me lesionei no fim do ano passado. Passei a ficar em casa, o que além das contas atrasadas tá deixando a barra bem pesada”. 

O mestre Tom Jobim deu a ideia que “é impossível ser feliz sozinho”. Mas, ele certamente não se referia à presença física: “Fundamental é mesmo o amor”. Nos momentos de solidão, é ele, o amor, que pode transformar o sentimento de incerteza que às vezes nos arrebata.  Janaína: amor apesar das distâncias (Foto: Divulgação) “Nessa quarentena, vivi momentos cheios de demonstração de amor, apesar de todas as distâncias”, diz a arquiteta Janaína Lisiak, 29, que é baiana e mora em Belo Horizonte. “Cem dias de solidão? Não. Cem dias de muita companhia, de sentimentos à flor da pele, cem dias sem abraços, mas de muito acolhimento”, concorda Camille Lins. 

E mesmo quando a solidão é real, ela nem sempre é ruim, explica o psicólogo e psicanalista Luiz Mena: “A gente pensa que está todo mundo super pirando com o isolamento e na verdade tem muita gente que esta gostando desse estado de coisas. Pessoas que sofrem muito na relação com o outro, que se sentem invadidos pelo outro”. 

Os especialistas explicam que o distanciamento não quer dizer, necessariamente, estar sozinho. E que estar sozinho não quer dizer, necessariamente, sentir solidão. “A pergunta que se faz é se estar acompanhado evita a solidão. A solidão é singular de cada sujeito e nada tem a ver com o que se considera a ideia atual do ‘ser sem solidão’, do ‘ser popular’, do ‘ser independente e com elevada autoestima’“, entre outras”, diz a também psicanalista Lília Sampaio, que escreveu um artigo para o CORREIO sobre o assunto (clique aqui).

“A solidão é um sofrimento humano fundamental do qual não se escapa”, completa a psicanalista. Os efeitos afetivos das redes sociais e da internet, por exemplo, também são reais. “O afeto é real mesmo que exista uma tela mediando as relações”, acredita Luiz Mena. 

Recordações  Ao que tudo indica, aliás, todos os personagens ouvidos pelo CORREIO parecem ter passado da fase mais difícil. “Me encarar diariamente já não é um problema para mim há um bom tempo. Eu vivo o silêncio da calmaria”, diz a fotógrafa e educadora Rafaela Dominguez. Rafa: encarar-se diariamente (Foto: Divulgação) O mesmo sentimento da arquiteta Kátia Tavares, 30. “Posso dizer que depois de aceitar (o isolamento), viver o reparo é muito gratificante. Ressignificar esses momentos que eram  entre amigos ou em família tem sido até terapêutico”, diz Kátia, que mora no Rio, a 2,5 mil km da família, em Natal.

Ela valoriza muito as refeições em família. Se já sentia falta depois que se mudou para o Rio, imagina agora que não pode ter a companhia nem de um amigo. Muitas vezes, liga para Natal para conversar com alguém na hora do almoço: “Alô mãe? Vou almoçar agora, posso te ligar? Me faz companhia?”.

No final das contas, é preciso apegar-se às boas lembranças. Talvez inspirar-se no coronel Aurélio Buendía, que, de frente a um pelotão de fuzilamento, na hora de sua morte, recordou-se de um momento singelo e inesquecível, descrito na famosa primeira frase de Cem Anos de Solidão: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aurélio Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou para conhecer o gelo”. 

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Leia na íntegra os depoimentos dos nossos quarentenados solitários 'Que tudo isso acabe', diz Henrique (Foto: Nara Gentil) "Meu maior desejo é abraçar minha mãe""Estou em casa sozinho desde março. Desde março que só vejo minha mãe por vídeochamadas. E é o que mais me dói, não poder abraçar a minha mãe durante esses 3 meses, indo para o quarto mês de quarentena. Minha mãe é a típica mãe baiana que ama abraçar e dar aquele "cheiro" no filho. Infelizmente isso faz falta pra mim e muito mais pra ela.

Decidi me isolar pois sou asmático, o tão temível grupo de risco. Convivo com a asma desde pequeno e sei como é ficar sem respirar e não queria ter como me preocupar com isso. Foi extremamente difícil no começo, tive problemas com ansiedade. Me senti sozinho, tive que me isolar das pessoas que me rodeavam e que eu amo e está sendo assim até hoje.

Depois do primeiro mês o que me ajudou foram as aulas online, como sou professor universitário e a universidade optou por utilizar uma plataforma online para dar prosseguimento às aulas. Amo ensinar e isso me fez muito bem. Além disso, ainda podia ter algum contato com as pessoas, no caso os meus alunos. Mas eu ainda continuava tendo problemas de ansiedade. Isso porque eu estava com muito medo de pegar a covid e encontrava uma válvula de escape nas aulas. Porém, não dava aula todos os dias. Ficar com cabeça vazia e sem fazer nada acabava me deixando mais neurótico.

Então, criei um projeto no YouTube para disseminar conhecimentos específicos dentro da Geologia, tive apoio dos alunos da UFBA e da UFOB. Tem sido extremamente cansativo conciliar as aulas da faculdade com as aulas no meu canal do YouTube, mas foi a melhor forma que eu encontrei de lidar com tudo isso que está acontecendo. 

Hoje o que mais me assusta talvez nem seja mais a covid. Claro que ainda estou assustado, afinal sou grupo de risco, mas a forma como algumas pessoas estão levando essa quarentena me deixa muito triste. Me isolei totalmente nesses três meses, saí de casa apenas três vezes em todo esse tempo. Nem para mercado tenho ido, faço as compras por aplicativo ou amigos me entregam e deixam no portão de casa.

O que quero dizer é que tem muita gente se esforçando, se privando de estar com as pessoas que mais amam, para poder acabar com essa quarentena o mais rápido possível, mas por outro lado tem essa parte da população que não quer entender essa situação que estamos vivendo.  Ultimamente, o meu maior desejo é que tudo isso acabe e eu possa compartilhar os melhores momentos com as pessoas que amo e eu finalmente possa dar aquele abraço baiano na minha mãe".

Henrique Assumpção, 30 anos, geólogo e professor universitário.  Rafaela diz que ainda não vivenciou dias de tédio (Foto: Divulgação) "Vivo o silêncio da calmaria"A conta é quase essa. Desde que este distanciamento social iniciou até hoje, praticamente 100 dias se passaram. O trabalho tem sido um dos meus maiores norteadores do tempo, começamos com a perspectiva de 15 dias. Isso foi se ampliando até chegarmos em Junho e este é o recesso escolar mais atípico que já vivi. Encarar-se diariamente já não é um problema para mim há um bom tempo, enquanto muitas famílias vivem o dilema de enfrentar-se numa convivência atípica e intensa, eu vivo o silêncio da calmaria.

Entre os poucos latidos do meu cachorro, a ventania da janela, o barulho do trânsito, as maratonas de filmes e as trilhas sonoras de cada treino na sala de casa, os dias passam de forma intensa e paradoxalmente interessantes. Alguns melhores que outros sim, mas talvez eu seja um daqueles casos em que ficar em casa numa pandemia não se tornou uma tortura. Não vivenciei o tédio dos dias vazios, o home office e os atendimentos psicoterapêuticos online ainda não me permitiram esta brecha. As chamadas por vídeo com os mais próximos ajudam muito, confesso. O entardecer pela janela e a fotografia também.

Logo eu que sou dos dias de sol e banho de mar, da fotografia de rua e de gente, percebo em mim a tranquilidade de entender que são dias de resguardo mesmo. Vontade de correr na orla? Tenho sim, mas não o faço. A minha consciência do coletivo não me permite. Percebo a minha empatia aguçada, a escuta ativa, a doação para quem precisa seguindo firme, sem precisar de plateias. Minha diarista segue em sua casa desde o início, meu compromisso com ela é social, é humano.

Talvez seja isso: o quanto de aprendizado pode haver em 100 dias só de você com você? Pode ser sofrido, pode ser solitário, mas se você escolher enxergar uma nova perspectiva - e é a que eu escolho -, pode ser uma oportunidade imensa. De crescimento interno, de fortalecimento da sua autoestima, do cuidado com os outros. Se esse mundo se tornará melhor, já não sei mais. Sigo vendo e ouvindo absurdos. Sem desistir do potencial da humanidade, mesmo com toda a contrariedade que o momento apresenta. Sobre o que esses dias em casa vêm me ensinando, na prática, é que começar por si mesmo é uma iniciativa incrível.

Rafaella Dominguez Psicóloga, educadora, fotógrafa. Luciana não finje normalidade e tem a companhia de Arepinho (Foto: Divulgação) "O único conhecido que encontrei na rua foi o racismo""Fazer o isolamento em outra cidade, junto a minha família ou ficar sozinha em Salvador?  Sou de Recife e esse foi um conflito que me seguiu por muito tempo. Afetada desde a infância por alergias respiratórias, sou parte de um grupo de risco pouco mencionado nas campanhas preventivas à covid-19. Não daria para vacilar. 

Para quem mora só e viaja a trabalho com frequência, interagindo com gente o tempo todo, tentei criar rotina mais rara para mim: exercícios, meditação, tentando conter o risco de me tornar workaholic, diante de um trabalho que só triplicava, e após o recente final de uma relação. No entanto, tentar positivar tudo isso não combinava com assistir, impotente, aos efeitos indigestos da equação: pandemia x crise política.

Esforços para manter certa normalidade caíram por terra quando li o texto de uma antropóloga especialista em crises de emergências, que recomendava: “não finjam normalidade, não se cobrem rotinas, não há nada errado em trabalhar até mais tarde, deixar um dia a casa sem varrer, ou uma louça dormir suja". Relaxei. Tento minimizar os contatos com internet, já que trabalho o dia inteiro conectada. Mas o mundo encantado das lives, a música e os debates políticos e identitários me puxam como imã, e por ali ia tentando aprender, me informar, me isolando dos dramas midiáticos.

Entender que nada estava normal me fez acolher limites e dizer alguns “nãos” saudáveis. Foi frustrante negar a uma amiga o convite para escrever crônicas sobre percepções da pandemia em seu blog. A escrita me cura, mas nessa situação temia o compromisso datado a cada semana, porque entendi que se gasta energia dobrada para fazer o dia a dia ter um mínimo de fluidez.

Saí de casa pela primeira vez 20 dias após o início do confinamento, para ir ao supermercado. Minha primeira máscara foi doada por uma colega de trabalho que é da minha vizinhança. Iniciávamos ali uma parceria solidária para ajudas mútuas de várias ordens: compras, informações sobre delivery, serviços bancários, envio de guloseimas nos fins de semana. Isso me remete à infância, quando vínculos com vizinhanças tinham uma dimensão comunitária.  Conversamos entre grades de nossos prédios, de máscaras, por curtos espaços de tempo, sempre ao entregar ou receber encomendas dos acordos solidários entre nós. Para além disso, nunca encontrei amigos e amigas pessoalmente.

Nesses intercâmbios conheci sr. Benedito do Hortifruti; sr. Alexandre dos cogumelos; sr. Francisco, que traz peixe e camarão da Ilha, o responsável por eu ter me arvorado com sucesso no trato do camarão fresco; sr. Marisio que higieniza estofados; Adriana, a veterinária que atende em domicílio. De março até agora foram quatro saídas de casa. O único conhecido que encontrei na rua foi o racismo. Esse infeliz algoz que nos persegue há tanto tempo, sendo praticado deliberadamente por cidadãos que se acham acima do bem e o do mal, e que são potenciais vítimas de pessoas negras.

O fato se deu contra um embalador de supermercado, que se arriscava para garantir sua sobrevivência e a feira dos que podem fazer quarentena. Do lugar da mulher negra que sou, me coube tentar problematizar ali que: se não estamos no mesmo barco, somos afetados pela mesma chuva. O cuidado precisa ser mútuo e corresponsável. Para além da adesão dos funcionários que assistiam, esforço vão. Voltei naquela tarde com uma desesperança na romanceada visão que a pandemia podia permitir mudanças de comportamentos. Veremos. 

O trabalho triplicou pois assumi a faxina semanal, que passou a dialogar com o esforço intelectual que as outras labutas me impõem. Ainda mais em tempos que atuar no social implica em reinventar os detalhes da nossa prática a cada semana. Ao mesmo tempo que tudo isso não me dava tempo para tantos medos, eu terminava a semana exausta, só o domingo restava para um pouco de descanso.

Em abril chegou para mim o tempo em que as mortes começaram a sair das estatísticas e ganhar rostos e afetos. Perdi uma tia tão amada. Havia uma dor desconcertante em não poder despedir-me dela, já que o mais prudente era não ir à Recife, onde vivia. Vi partir uma das grandes lideranças comunitárias, que conheci no início da minha atuação como assistente social, partir de forma traiçoeira pela covid-19. Fui tocada pela passagem de artistas importantes para nossa cultura.

Nesses dias, desejei viver o que Saramago tão intensamente narrou em seu “Intermitências da morte”: que por pelo menos um dia, a morte não viesse buscar ninguém. Ao mesmo tempo, cantarolava (eu canto na janela, olhando pra uma brecha de mar) me perguntando se o que estávamos vivendo era a profecia de Raul Seixas na lendária “O dia em que a terra parou”. Aliás, cantar e ler sempre me abrigou mais que ver TV.

Em abril chegou Arepinho, um filhote de gato “raça – frajolinha” (essa raça não existe, inventei para ficar divertido). Doado pela amiga-xará, a quem vi uma vez no dia da entrega, de máscara dentro do carro, por cerca de três minutos. O felino chegou com 2 meses de vida, e juntos decidimos sobre brinquedos, limites, horários, respeito ao trabalho e trocamos carinho. A vida ficou bem mais legal com ele, que junto com a música, os livros e os amigos, é também parte do que me salva. 

Ah, os amigos! E por falar nelas e neles, meu isolamento sempre foi físico, nunca, nunca social. Não há um só fim de semana que não resgate antigos contatos, perdidos na pressa de antes da pandemia ou que não atualize a vida com o núcleo duro daqueles mais íntimos. Esse recurso, aliás, é um velho conhecido de uma filha única, para quem a solidão foi mais parceira do que inimiga. Os amigos foram e são uma aposta certeira de uma vida toda. Foi assim que tive festinha de aniversário virtual com amigas e colegas de trabalho, recebi presentes delivery, e me acalentei, com direito a vinho e mais música. 

Na contramão dos flashs de alegria, as mortes de João Pedro, George Floyd e do menino Miguel, me trouxeram os piores dias vividos até aqui. A falta de ar foi real, agravada por preocupações familiares, sobrecarga de trabalho, clima úmido, tudo que desarrumava emoções que com tanto esforço eu tentava por no lugar e acirrava alergias. Tive muito, muito medo de me haver contaminado e imaginava, se ocorresse, como me cuidaria sem apoios presenciais. Uma semana intensificando alimentação, vitamina C, monitorando temperatura e, ufa, nada. Outros sintomas não apareceram, a falta de ar passou. Sigo inteira no que me é possível.

Para o futuro, sonhos simples: um mergulho no mar, a quem vi com saudades uma vez, numa caminhada a pé até o banco, ou saúdo a cada manhã, de longe, da janela da cozinha. Quero abraços muitos, voltar a usar batom, pegar um voo pra qualquer lugar, sentar no bar tão querido, bater papo com garçons, tomar uma cerveja gelada, e, seria pedir demais, ver minha gente sorrir de novo?".  

Luciana Pinto, 48 anos, assistente social e gestora na organização não governamental Terre des Hommes Suisse. Daniela: autoconhecimento (Foto: Divulgação) "Meus dias têm sido  de solitude e gratidão"

"Confesso que até receber o convite para participar da matéria, eu não tinha parado pra pensar sobre como os dias de “solidão” estão sendo pra mim. Isso mesmo: “solidão”, entre aspas. Primeiro, porque tenho duas filhas de quatro patas que fazem o favor de nunca me deixar ficar só. Segundo, porque solidão é diferente de solitude.

A quarentena, bem como o isolamento social, tem sido pra mim muito mais um momento de solitude e autoconhecimento do que de solidão. Aprender a gostar da própria companhia e se sentir bem, leve e feliz estando 100% só, é libertador.

Tenho tentado manter minimamente uma rotina de horário de sono ao mesmo tempo que não tenho rotina nenhuma. Cada dia é uma experiência nova: tanto no trabalho home-office, quanto nas tardes alegres com minhas cadelas, que antes se resumiam em passeios apressados no final do dia. Tenho me saído uma excelente dona de casa, aproveitei o tempo livre pra redecorar os ambientes e finalmente pôr em pratica as receitas guardadas. E tenho me surpreendido!

Além do mais, jamais poderia dizer que me sinto só, seria uma ingratidão. Meus amigos e familiares, em especial minha mãe, todos os dias mandam notícias e procuram saber como estou. Tenho recebido muito carinho mesmo a distância. A internet e as redes sociais, tem permitido que estejamos perto mesmo estando longe e estreitado a saudade. Me sinto amada e acolhida, sei que não estou só. É isso: meus dias de isolamento tem se resumido a solitude e gratidão". 

Daniela Lubarino, 27 anos, advogada. Kátia: diversas fases "Passei por surto, negação, aceitação e agora reparo""Vocês sabem que quem nasce no Rio Grande do Norte é chamado de potiguar, né? Esse nome vem das tribos que viviam nessa região que que tinham o nome de Potiguaras. Em tupi, potiguar significa 'comedor de camarão'. E a gente come bastante camarão mesmo. Na verdade, a gente come muito de tudo, e nossa cultura gira muito em torno da comida. Nesse tempo de pandemia, eu tenho pensado muito nisso, já que na minha família sempre foi muito de comer junta. Sabemos bem os pratos preferidos de cada um e os pratos mais comuns para as diferentes datas comemorativas. E eu moro sozinha, tô a 2,5 mil km de distância deles. Então, dá pra ter uma ideia de como essa solidão tem batido forte, né?

Cozinhar só para mim, fazer as refeições sozinha, limpar a casa sozinha, ver série e ouvir música sozinha. Os sentimentos em relação a isso foram inúmeros, ouso dizer que já passei por tudo entre surto, negação, aceitação e reparo. Mas tudo mantendo o isolamento social. E lidar com tudo isso sozinha é barra (aliás, sozinha não, um salve aí pra Fernanda, minha terapeuta! E haja terapia viu?). Mas posso dizer que depois de aceitar, viver o reparo é muito gratificante. Ressignificar esses momentos que eram sempre entre amigos ou em família tem sido até terapêutico. Cozinhar, que antes era um momento de doação meu pro outro, é um momento de autocuidado, um carinho em mim mesma.

O esporte, que era meu principal momento de socialização no dia, já que trabalho de casa, agora é algo só meu, de reparo da relação comigo mesma, com meu corpo, com minha mente. A saudade segue, imensa. E eu não vejo a hora de abraçar os meus. Mas é importante também encontrar onde for possível, esses pedacinhos de cura, para quando a hora desse abraço chegar, estarmos inteiros, cheios de vida. É claro que tudo isso é processo e os dias e sentimentos ruins também vêm. Mas nesse momento achei que isso era o que eu tinha de mais útil pra compartilhar: o que de bom tem surgido no meio desse pandemônio. 

Até lá sigamos, descobrindo e redescobrindo os processos de crescimento e cura no meio da solidão. Sem esquecer de aproveitar o que a tecnologia tem pra oferecer, né? 'Alô mãe? Vou almoçar agora, posso te ligar? Me faz companhia?'".

Kátia Tavares, 30 anos, arquiteta O vírus levou as férias que Janaína passaria em Salvador (Foto: Divulgação) "Não sou uma loba solitária""A pandemia afeta a todos, por vezes de maneiras distintas. Um dos piores momentos que eu lidei foi quando cancelei uma ida para Salvador, com passagem comprada e tudo. Passaria minhas férias na capital baiana, me lambuzando de dendê, reclamando das chuvas de junho e da impossibilidade de ir à praia. Sabia que pegaria até canoa para ver meus amigos e não seria a primeira vez a sair da rua ensopada pela chuva. Contudo, nem isso o vírus me permitiu viver. 

Antes desse estado de exceção começar, já tinha as passagens, então eu praticamente rezava para que isso tudo tivesse passado para poder viver Salvador em junho, com direito a São João no interior. Mas acabei cancelando tudo, pois seria muito mais frustrante não viver a cidade da forma que queria, ficando trancafiada dentro de casa. Ademais, minha viagem tinha fins acadêmicos – iria explorar alguns acervos para ter acesso à documentos que subsidiassem minha dissertação de mestrado. Contudo, os acervos estão fechados, o que me levou (também) a redirecionar as minhas intenções de pesquisa. 

Mantive, ainda assim, as férias do trabalho para me apaziguar, ou melhor, me afastar do celular e me concentrar no mestrado, escrevendo com o material que possuo em mãos. Trabalho enquanto gestora pública estadual da Assistência Social e as demandas chegam constantemente no celular. Nas primeiras semanas, vivia em estado de alerta, qualquer notificação me deixava extremamente ansiosa e estava tão saturado no final do dia que construi a distância com o celular de forma drástica: jogava em qualquer canto e ia viver a vida que me cabe no isolamento.

Esse gesto tem perdas, porque os círculos de amizade estão mais intensos, se comunicando pelos aplicativos, mas eu não consigo acompanhar. Perco algumas atividades coletivas (sobretudo os encontros virtuais mais espontâneos) e me afundo na solitude... que não é nada mal vivida. Os livros são minha eterna companhia. No início do ano, já tinha estabelecido que esse seria o ano para me focar em autoras e autores negros. Agora, com os movimentos negros se mobilizando durante (e apesar da) pandemia (uma vez que as violências contra os negros continuam a operar apesar da pandemia...), essas leituras se mostram mais urgentes do que nunca. 

Apesar dos descompassos na comunicação, eu não sou uma “loba solitária” plena e vivi momentos cheios de demonstração de amor, apesar de todas as distâncias. Minha mãe se tornou uma expert em whastapp e conversamos com uma frequência maior do que antes. Me senti extremamente amada no dia do meu aniversário, com amigas e amigos brotando de vários lugares, me ligando, fazendo videochamadas... Então, durante essa turbulência, aquece o coração saber que as pessoas estão presentes, da forma que conseguem".

Janaína Lisiak, 29 anos, arquiteta 

"Furar isolamento não dá tesão""Cem dias sem, literalmente, colocar o pé na calçada. Quem diria que chegaríamos a isso? Compras online, home-office, videochamadas (para terapia, atividade física, amigos, família e trabalho),  novelas, livros, propostas para furar o isolamento, achados potencialmente interessantes nas redes sociais que não passariam (não passaram e não passarão) de meia dúzia de palavras soltas no “privado” ou no whatsapp. Já não sei mais como sentar numa mesa de bar. Como usar um copo que não é seu? Como beber com máscara? Como manter a distância do garçom-amigo? 

Vestir-se para sair também já não é familiar. Quatro ou cinco peças são suficientes para quem está em casa, sozinha, há mais de três meses. oos? Como respirar num espaço tão apertado e cheio? (aliás...saudades, aeroportos). Apertos de mão, abraços e “cheiros”, essencialmente físicos, só virtuais. Não há cheiro, nem gosto ou gozo do outro.

Morar sozinha em tempos de covid é um enorme exercício de paciência, autoconhecimento, resiliência. É lidar com um vírus que tem matado milhares e boa parte dos brasileiros resolveu negar, é conviver com o bafo do autoritarismo e não poder ir à rua gritar contra isso, é tentar (e falhar) ter empatia com aqueles que, sabe-se lá por qual motivo, lotam shoppings e praias e com os que se aproveitam do momento para violar direitos, especialmente os dos que quase já não têm acesso a nada. É não sucumbir à tentação de enfrentar aeroportos para estar com pais e irmãos que moram em outros estados, é um “oi, sumida” todo dia e é negar convites para encontros sexuais com esses seres que, além de ausentes, dão de ombros para a gravidade da situação. Corajosos, talvez? Não. Irresponsáveis e broxantes. Furar isolamento, definitivamente, não dá tesão. 

É lidar com a ansiedade, com uma taquicardia que insiste em aparecer, com o tédio, com o medo, com a angústia, com a falta de qualquer perspectiva. É querer se informar, mas precisar fugir das noticias. Cem dias fisicamente longe da minha Macondo. Cem dias de solidão? Não. Cem dias de muita companhia...de sentimentos cada vez mais próximos, à flor da pele e de tantos e tantas que, mesmo tão longe, permanecem juntos...por cuidado, por comprometimento. Cem dias sem abraços, mas de muito acolhimento. 

Cem dias tentando construir um “tudo bem” possível, que honre as vidas que se foram e seus queridos, que respeite as orientações científicas, que contemple as agonias diárias, que seja grato pela saúde e oportunidades (privilégios mesmo) que temos eu e dos meus, que seja racional e que promova a esperança".

Camille Lins, 35 anos, defensora pública