A arte brasileira nasceu do corpo de uma baiana gorda

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  • Da Redação

Publicado em 14 de abril de 2019 às 10:50

- Atualizado há um ano

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Se Deus criou o homem do barro, e soprou à sua imagem e semelhança, a arte brasileira veio do gesso no corpo de uma mulher. Uma mulher baiana, negra e gorda.

Todo legítimo boçal gosta de começar suas indagações com “você sabia?”. É um tipo de carteirada simbólica pra mostrar um conhecimento além do convencional. Mas, você sabia que a Bahia tem sua própria Vênus de Milos?

A Vênus de Milos é aquela estátua grega, de 202 centímetros, biamputada, simbolizando um ideal de beleza, ternura e perfeição – e que repousa, hoje, seus quase 19 séculos de vida, impávida (eufemismo para cara de bunda), no museu do Louvre, em Paris.

Em 2007, aqui na Bahia, um grupelho de ladinos, com refinado gosto artístico, roubou os braços de bronze da estátua de Pelé, em frente à Fonte Nova, para transformar o Rei numa deusa. Foto: Reprodução É preciso mesmo dar o braço a torcer. Foi um toque de camisa 10 dos gatunos. Se Pelé nunca usou as mãos para se tornar uma unanimidade global (alô Maradona), vencer três Copas e aproximar seu nome do Olimpo, podem mesmo lhe subtrair os membros superiores, que ainda assim mantem-se o culto sagrado e as romarias.

Embora o chiste ainda permita novos desdobramentos não era exatamente sobre o Astro-Rei que me referia quando disse que a Bahia tem sua própria Vênus. A nossa, legítima, é muito mais antiga e importante que o armengue (des)montado pelos pivetes de Nazaré. Foto: Reprodução Arte brasileira Em meados do século XIX, três irmãos mexicanos mudaram-se para o Brasil e se estabeleceram incialmente no Rio Grande do Sul. A convite de Dom Pedro II foram depois para o Rio de Janeiro, capital do império. O primogênito deles era Rodolpho Bernardelli, escultor de fino talento. Depois de viagens pela Itália e outros países do Cone Sul, ele passou a fazer parte da Academia Imperial de Belas Artes, fundada pelo vô de Pedrinho, Dom João VI.

Uma das missões de Bernardelli e seus dois irmãos (Félix e Henrique, ambos pintores) era estabelecer uma arte legitimamente nacional, afastando o forte domínio estrangeiro sobre nossas criações – é curioso que, volta e meia, esse desejo cívico surja nas expressões artísticas brasileiras, seja com o Modernismo, de 1922, a Bossa-Nova, no fim da década de 1950, ou Tropicalismo, nos anos 1970.

É igualmente curioso também que a tarefa de criar uma arte nacional afastando o domínio estrangeiro tenha sido encomendada pelo imperador, entre outros artistas, a três mexicanos.

O fato é que, em 1886, Rodolpho Bernadelli esculpiu em gesso o corpo de uma mulher negra e gorda e a batizou de “Baiana”. Os trajes são de uma baiana de acarajé. O corpo projeta curvas e a cabeça está coberta por torso simples. Diferente de Vênus e seu rosto impávido (eufemismo para cara de bunda), nossa baiana sorri com deboche, enquanto mostra um de seus pés, descalço, abaixo da saia de renda.

Baiana A escultura mede pouco mais de 16 centímetros, bem menor que a Vênus grega. Ela é um marco fundador de renovação à medida que retrata pessoas comuns, a partir de traços simples, e ignora a grandiloquência dos figurões da nobreza imperial. Foto: Reprodução Se Vênus não tem os braços, a Baiana não tem uma das mãos. Ela dispensa a direita. Com a esquerda, sensualiza. Apoia sobre os avantajados quadris, em pose de bule, dá nó nas cadeiras e deixa a mocidade louca.

“O corpo da mulher baiana é diferente. É mais curvilíneo, arredondando. Até mesmo a mulher magra tem esse perfil estético. Temos muita mistura de raças. E, pra nós do movimento ‘Vai ter Gorda’ é maravilhoso quando fazem estudos e pesquisas sobre a mulher gorda, porque precisamos realmente falar e explorar essa temática”, diz Adriana Santos, coordenadora nacional do movimento Vai Ter Gorda e primeira Miss Plus Size Bahia.

Adriana comemora o fato de uma arte engenhosa, concebida há dois séculos, retratar uma mulher gorda e, de quebra, representar, a gênese de uma nova linguagem artística no país. Como um bis, em looping eterno, de novo o Brasil nasce na Bahia.

“Saber da existência dessa Baiana é muito importante para nossa história de luta contra a gordofobia. São registros importantes e pouco explorados pela nossa história”, completa Adriana, acrescentando a informação que o movimento “Vai Ter Gorda” nasceu em Salvador com a missão de questionar padrões estabelecidos e disputar espaços de poder. Foto: Divulgação Assim como Vênus, aberta para visitação em Paris e não em Atenas, na Grécia, a Baiana também está longe dos museus de Salvador. Faz parte do acervo fixo da Pinacoteca, em São Paulo. Ainda assim, ela está muito presente desde canções que exaltam o “diabo nos quadris”, até aquelas que negam “a falsa baiana”, passando pelos versos que indagam “o que é que a baiana tem?”.

Aproveitando que abrimos espaço para perguntas: você sabia que Bernardelli esculpiu a Baiana à imagem e semelhança da Bahia?