A Bahia de todos os cheiros

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  • Nelson Cadena

Publicado em 11 de março de 2021 às 05:00

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Quando Thomé de Souza desembarcou na cidade, já faz 472 anos, Salvador cheirava a orvalho de manhã e o fundador da cidade trouxe consigo outros cheiros menos agradáveis, mais fortes:  carne seca e toucinho defumado. Salvador cheirava a orvalho e mar e, no inverno, a mata úmida. Os jesuítas detectaram outras olências. O Padre Anchieta sentiu o cheiro de almíscar da carne de Jacaré, segundo ele, mais concentrado nos testículos, e fez cara de nojo para o mau cheiro de certas aranhas e de alguns lagartos. Relevou “o cheiro muito forte, porém suavíssimo da árvore que sai uma resina para remédio”. A copaíba.

Frei Vicente de Salvador se encantou com o cheiro dos abacaxis “ananases cuja fruta em formosura, cheiro e sabor excede todas as do mundo”. Se impressionou com os tipos de maracujá, “todos muito cheirosos e gostosos”, e viajou na maionese, na descrição da flor que chamou de misteriosa e na qual enxergou os três cravos com que Cristo foi encravado. Transcorrido mais de dois séculos da fundação da cidade, o cheiro das laranjeiras era o predominante. Seu refrescante aroma encantava os viajantes estrangeiros e seduzia as mulheres da terra, que com as flores preparavam emplastros para a pele e os cabelos.

Quando o inglês Thomas Lindley aportou na Bahia, em 1808, após um passeio consentido no entorno do Forte do Barbalho, escreveu no seu diário: “Os vales vizinhos têm muitas laranjeiras, agora todas floridas. O ar ficou logo excepcionalmente impregnado de sua fragrância”. O holandês Maurice Ver Huell, na sua compulsória estadia na cidade, também se rendeu ao cheiro das laranjeiras. E, no final do século XIX, as do Cabula, não eram apenas cheirosas: exportadas para a Califórnia, ganharam reconhecimento internacional.

Maria Graham, que mais tarde seria preceptora da Casa Imperial, sentiu o cheiro de lixo. Avistando a Praia da Preguiça, definiu Salvador como a cidade mais suja do mundo. Na segunda metade do século XIX, o comércio e centro da cidade, cheiravam a rapé e fumo de rolo. Usados por negros de ganho que se aglomeravam nas esquinas, aguardando a hora do biscate. À noite, a cidade fedia, quando acendidos os candeeiros da iluminação pública, alimentados com o mal cheiroso azeite de baleia. As feiras livres trouxeram o cheiro de peixe e de mangue e, no século XX, de folhas e de incenso.

Nos primórdios do Carnaval, a cidade cheirava a cravo e canela, recheio das laranjinhas de cera do entrudo que explodiam no corpo e na cabeça dos foliões. E, nas primeiras três décadas do século XX, cheirava a cocô de jegue e cocô de boi, mais de uma centena de equinos e bovinos que puxavam os carros alegóricos, pela Rua Chile e Avenida Sete. E, para compensar, cheirava o lança-perfume. Na festa de Momo de 1918, a Loja Duas Américas, o maior distribuidor do produto, importou 96.000 bisnagas. No Carnaval moderno, o cheiro de almíscar que Anchieta sentiu dos testículos de Jacaré, reapareceu como cheiro de mijo.

A modernidade trouxe o cheiro de gasolina e de diesel queimado. O cheiro de esgotos nas valas abertas dos rios, nunca cobertas e, também, nas praias, algumas com forte cheiro de algas podres. 

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras.