A ciranda do pensamento mágico

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  • Kátia Borges

Publicado em 10 de outubro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Há uma brincadeira muito popular nas redes sociais. Perguntam com quem você gostaria de se sentar no banco de uma praça e conversar durante algumas horas. De acordo com as regras desse jogo, o escolhido pode ser qualquer pessoa, esteja ela viva ou morta, seja anônima ou famosa, do passado ou da nossa época.

Você pode escolher aquele colega distante do jardim de infância, o filósofo Platão, a cantora de blues Janis Joplin, a poeta Hilda Hilst. Mesmo a escritora Clarice Lispector, que eu imagino que ficaria em silêncio o tempo todo, ao nosso lado no banco da praça. Bom, vivi algumas experiências interessantes com esses reencontros.

Um amigo querido, por exemplo, bem inteligente até, tornou qualquer reaproximação impossível por seus posicionamentos. A um outro cedi o benefício do silêncio pela dor embutida em um possível confronto — termos em comum a mesma perda. E há ainda aquele que, já morto, retornou ao coração sem qualquer esforço.

Por destino, tecido numa crônica, o resgate de um caderno manuscrito de poemas. Uma letra de música mimeografada dentro de um livro. Saber que ele guardou durante anos aquele fragmento de nosso primeiro encontro no ginásio. Talvez fosse bom tê-lo um pouco comigo de novo para conversarmos sobre o mundo.

Mas confesso que, diante dessa brincadeira recorrente, eu respondo sempre a mesma coisa. Gostaria de conversar durante algumas horas com a minha mãe no banco de uma praça. De preferência sob a copa de uma árvore bem frondosa, pois ela amava muito o verde. Isso não é possível há quase seis anos.

Teria muito a contar sobre como vamos, o mundo e a família, os gêmeos com quase nove anos! Mostraria o livro novo. Diria que ando trilhando outros rumos, reaprendendo a ser feliz aos poucos. Menos sisuda. Levemente louca, como ela sempre quis. Não nego que até mentiria, só para que não se preocupasse muito.

Comento uma e outra vez, sempre que os algoritmos trazem essa brincadeira de volta. Como se a simples repetição da resposta pudesse surtir algum efeito, como quem sobreviveu à ciranda “do pensamento mágico”. Aquela esperança absurda de retorno enquanto o cotidiano se acomoda, corvo que repete o mesmo lamento.

Uma revista de ciência dessas bem famosas diz que há um programa de computador capaz de simular a comunicação entre os vivos e os mortos. Considero meio doentia essa simulação eletrônica de presença feita de fragmentos, mas confiro atentamente cada linha do texto. Ramones na trilha sonora, enquanto leio.

Basta inserir no tal programa gostos e jeitos para experimentar a sensação de retomar conversas interrompidas pela ineludível. Ah, mas essa espécie forjada de contato — e sinto um travo na boca — remete ao sabor artificial de morango que devastava nosso paladar na infância. O pó vermelho e doce do corante diluído em água.

Kátia Borges é escritora e jornalista