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Paulo Sales
Publicado em 16 de maio de 2022 às 05:09
É da jovem Micòl, personagem de O Jardim dos Finzi-Contini, romance de Giorgio Bassani, a seguinte fala: “Eu te peço que você olhe ali o bote e admire com que honestidade, dignidade e coragem moral ele soube suportar todas as consequências da sua total perda de utilidade. As coisas também morrem, meu caro. E logo, se elas também têm que morrer, que assim seja, é melhor deixá-las seguir o próprio destino.”>
Micòl, seu pai e sua mãe morreram como coisas. Judeus cultos e aristocráticos numa Itália à beira do colapso da Segunda Guerra, os Finzi-Contini foram parar num campo de extermínio alemão, de onde não voltaram – o irmão, Alberto, fora vitimado pouco antes por uma doença particularmente cruel. Imagino a honestidade, dignidade e coragem moral com que eles souberam suportar todas as consequências da sua total perda de utilidade. Afinal, eram judeus vivendo sob um regime fascista.>
Essas vidas que se dissiparam em fornos crematórios são recordadas por Bassani nesse belo e triste romance de cunho autobiográfico, que acaba de ganhar nova edição pela Todavia. Ao rememorar um período definidor da sua juventude (ele conviveu com a família e era apaixonado pela moça), é como se o autor trouxesse de volta Micòl e o pequeno mundo que a cercava: a mansão, as partidas de tênis, os passeios pelo jardim, as conversas acaloradas, a cidade de Ferrara, o amor não correspondido.>
Um amor que corroía, dilacerava, devastava. Como explica a própria Micòl ao seu pretendente fracassado, incapaz de compreender a sua recusa: “O amor (…) era uma questão para pessoas decididas a serem dominadas reciprocamente, um esporte cruel e feroz, bem mais cruel e feroz do que o tênis, para ser praticado sem exclusão de golpes e sem nunca se preocupar com a mansidão do espírito e a honestidade de propósitos para suavizá-lo.”>
Todos nós já tivemos essas paixões incandescentes, já choramos com o rosto no travesseiro por termos sido preteridos. Todos nós já morremos uma vez para renascer em seguida, ainda que combalidos. É mais ou menos o que diz o pai do narrador ao tentar consolar o filho e ajudá-lo a encontrar um rumo, à medida que a guerra se avizinha:>
“Na vida, se queremos realmente entender as coisas, compreender realmente como são as coisas deste mundo, temos que ‘morrer’ pelo menos uma vez na vida. E então, já que a lei é esta, é melhor ‘morrer’ quando ainda se é jovem, quando ainda se tem muito tempo diante de nós para que possamos nos levantar e ressuscitar… Entender as coisas quando já se é velho é muito pior. O que é que se pode fazer? Não se tem mais tempo para recomeçar do zero e a nossa geração já cometeu tantos equívocos!”>
Muitos anos depois de extintos, os Finzi-Contini ainda assombram o protagonista. O lindo palacete que frequentou, arruinado e sem o belo jardim de outrora, é um testemunho de como o passado não pode ser limado do presente. Mesmo que tivesse desabado ou sido demolido, ele permaneceria, íntegro e imponente, nessa fortaleza inescrutável que é a memória.>
Volto às coisas e ao significado que elas têm na nossa vida. Os móveis, brinquedos, utensílios domésticos, livros, discos, equipamentos eletrônicos e tudo mais que se amontoa nos metros quadrados das nossas casas. Mesmo cada vez mais descartáveis, eles tendem a durar mais do que nós. Tornam-se, com o passar dos anos, fardos dos quais temos que nos livrar – ou não. Com os entulhos do passado também não é assim?>
Outro dia, um amigo me mostrou uma linda caixa de madeira que ele mesmo fez, num admirável exercício de marchetaria. Dentro da caixa havia uma antiga machadinha. A mesma machadinha que foi do seu avô e com a qual ele brincava quando criança. Já adulto, ele sonhava em reencontrar esse pequeno objeto, aparentemente sem serventia, que estava em outra cidade, na casa de uma tia.>
Meu amigo fez a caixa com o único intuito de guardar essa machadinha e protegê-la com todo cuidado, como se faz com uma pedra preciosa ou uma peça de porcelana. Porque dentro dela não havia só uma machadinha. Havia uma história, uma infância, um passado a ser resgatado. E isso, como o personagem de Bassani descobriu da maneira mais amarga, tem um valor imensurável>