A incompletude da vida

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  • Paulo Sales

Publicado em 11 de janeiro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Escrevo em meio a uma avalanche de sentimentos que se derramam sobre minha mente, agora ligeiramente entorpecida pelo vinho. Perdi uma tia, morta em consequência da covid-19, que fazia aniversário junto comigo e tinha a idade da minha mãe. Essa dor doeu mais forte. Sinto como se os resquícios de passado se tornassem uma borra quase impermeável, refratária às reminiscências de infância, quando passava férias no interior e a vida era uma sequência de descobertas, não necessariamente agradáveis, mas ao menos acompanhadas da certeza de que haveria uma compensação futura.

Hoje o presente me invade como um bombardeio. O fim da minha tia me deixou impregnado de um sentimento difuso, que transita entre o torpor e o desalento. Mas não foi o único baque: fui surpreendido mais cedo pela morte de uma mulher muito doce e querida, jornalista como eu e provavelmente da minha idade ou um pouco mais velha, levada por um câncer. É uma carga muito negativa que se lança sobre todos nós, amplificada pela sensação de amargura decorrente dos 200 mil mortos pelo vírus maldito. Estamos presos a uma realidade aterradora e não sabemos como sair dela.

Tentei abstrair. Depois de muitos anos, voltei ao meu filme preferido: A Insustentável Leveza do Ser. Sei que há obras maiores e cineastas mais talentosos. Mas desde que vi o filme de Philip Kaufmann pela primeira vez, sentado no chão de um cinema lotado no remoto ano de 1989, tive a certeza de que estava diante da minha obra-prima particular. Aquela que trataria dos temas fundamentais que iriam marcar minha pobre aventura intelectual: a grande história esmagando o indivíduo, a incapacidade de amar incondicionalmente, a incompletude da felicidade, ameaçada pela morte sempre à espreita. Muito do jovem de 19 anos que viu o filme pela primeira vez permanece no homem de 50. Sou um homem triste. Sempre fui.

Terminei de assistir à trajetória acidentada de Tomás e Teresa tomado por uma comoção que me deixou com os olhos embaçados e a vaga sensação de que havia perdido pessoas muito queridas. Logo quando elas não tinham nada e tinham tudo. Tinham o amor, a cumplicidade, a frugalidade da vida no que ela abriga de mais fascinante. Não foi a primeira vez que chorei. Lembro vivamente de quando revi o filme numa madrugada gelada em São Paulo, lançando lágrimas no lençol enquanto subiam os créditos na tevê. Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche eram tão novos. Eu era tão novo.

Passei o dia pensando em A Insustentável Leveza do Ser, na minha tia morta e no quanto precisamos sofrer para continuar por aqui. É um pedágio muito alto a se pagar, mas ainda assim prosseguimos, como náufragos. Enquanto há um pedaço de madeira em que se agarrar ou a possibilidade de uma ilha, prosseguimos. É o que temos. Caímos, levantamos, continuamos no caminho. Até chegar a hora em que seremos nós o alvo a ser abatido. Inapelavelmente. Nesse momento seremos como zebras que se dão conta da batalha perdida. Garras vão nos dilacerar e presas sufocarão nossa garganta. Assim nos despediremos. Num espasmo, um sussurro, um estribilho. Enquanto nossos olhos se consomem de nada.