A insondável aventura de envelhecer

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  • Paulo Sales

Publicado em 8 de fevereiro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Outro dia minha filha levou Pudim, nosso cachorrinho, para passear no parque aqui em frente. Lá, ela encontrou uma moça com um beagle, que ao ver Pudim disse: “Ah, eu vi ele mais cedo. Estava passeando com um senhor”. O senhor era eu. Quando minha filha me contou isso, foi um baque. Vi a mim mesmo como um ancião encurvado, de bengala e calvície pronunciada. Senhor!

Escrevo um dia depois do meu 51º aniversário, e em momentos como esse a passagem do tempo acaba sempre alçada à condição de protagonista das minhas inquietações. Ser chamado de senhor talvez resuma de maneira apropriada quem eu sou para quem me vê. Mas não condiz com a imagem que tenho de mim mesmo.

É como se o envelhecimento fosse alheio a nós, uma camada de rugas, cabelos brancos e deformação física que não encontra eco no nosso íntimo. Algo que se projeta de fora para dentro, e não o contrário. Como bem definiu Oscar Wilde: “A tragédia da velhice consiste não no fato de sermos velhos, mas no fato de ainda nos sentirmos jovens”.

É evidente que, ao me olhar no espelho, percebo o processo que desvirtua a harmonia e o apogeu físico de quem fui aos 20, 30 anos. Mas não ao ponto de considerar natural ser chamado de senhor. É nítida a mudança na forma como somos vistos. Vamos ficando translúcidos, até que enfim vem a completa invisibilidade.

Lembro agora de um trecho de Desonra, o grande romance de J.M. Coeetze, que fala sobre a alteração repentina da relação do protagonista com as mulheres: “Se olhava para uma mulher de um certo jeito, com certa intenção, ela retribuía o olhar, disso tinha certeza. Era assim que vivia; durante anos, décadas, essa foi a base da sua vida. Um belo dia, tudo isso acabou. Sem aviso prévio, ele perdeu os poderes. Olhares que um dia correspondiam ao seu deslizavam como se passassem através dele. Da noite para o dia, virou um fantasma.”

É claro que há o componente geracional: os mais novos nos veem como seres de uma outra espécie, e nada mais patético do que tentarmos rejuvenescer e nos equiparar a eles com roupas berrantes, gírias antiquadas e cabelos tingidos. De minha parte, deixo a ação do tempo caminhar livremente sobre a pele, os músculos e o couro cabeludo. Mas a pergunta que fica é: como pode ter passado tão rápido?

Outro dia éramos nós a olhar os mais velhos com ar de superioridade e desdém, refratários a conselhos ou sermões. Outro dia éramos nós na noite alta, seduzindo e sendo seduzidos, impetuosos e destemidos como cavalos selvagens. Mas um dia nos tornamos o senhor do cachorrinho. Como escreve Julian Barnes, em O Ruído do Tempo: “Talvez esta seja uma das tragédias que a vida trama para nós: é nosso destino nos tornamos, na velhice, o que na juventude mais teríamos desprezado.”

Não que considere o envelhecimento um processo traumático ou penoso. Até porque, como diria Verissimo, é melhor do que a outra alternativa. Gosto da serenidade, de optar pela prudência em vez do arrebatamento e da precipitação. Principalmente, gosto de degustar com mais acuidade os prazeres que a vida em sociedade proporciona, seja ao beber um vinho de qualidade ou admirar um monumento antigo numa cidade desconhecida. Quero prosseguir. Não gostaria, afinal, de negar a mim mesmo a insondável, bela e tortuosa aventura de envelhecer.