À noite todos os fatos são pardos gatos

Chego a conversar com gatos – eles nunca falam nada – mas sei que me escutam e me compreendem

  • D
  • Da Redação

Publicado em 7 de abril de 2019 às 05:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

*A Coluna Vertebral é ilustrada por Saci Pedro Evito sair à noite. Não sem motivo. Esta urbe na qual amarrei meu jegue há três anos não é nenhuma Broadway. Também eu não sou mais nenhuma Broadway. Levo vida de monge com estoicismo. Como e durmo pouco. Ando e escrevo muito. Bebo muita água. Penso demais. Às vezes, me desligo, alcanço o grau ‘pensamento zero’ – e atinjo o nirvana possível. [Terça-feira, 2 de abril. Comecei nova série de sessões de fisioterapia. Sugeriram-me o horário das 18 horas. Não me opus. Fui caminhando de forma lenta e cautelosa – mergulhando na escuridão outonal de final de tarde – como se a visse pela primeira vez].

Gostei de rever a noite e as ruas bem e mal iluminadas. O lugar para onde me destinava não é longe de casa. Tudo aqui é perto. Em menos de dez minutos estava ao pé da ladeira. Tudo aqui é ladeira. No alto da rua se localiza a clínica de fisioterapia que costumo frequentar. Na penumbra de árvore não identificada avisto um gato – e os gatos e os felinos em geral são os mais belos animais da Terra – a atriz Ava Gardner, noblesse oblige, vem logo em seguida.

[Tenho com felinos uma relação visceral que parece milenar. Chego a conversar com gatos – eles nunca falam nada – mas sei que me escutam e me compreendem. Três dessas criaturinhas adoráveis marcaram minha vida: 1. Poti, gordo e inábil, morreu ao cair no tanque do quintal do casarão da Avenida Rio Branco. 2. Brigite, sempre apaixonada, gostava de me lamber a virilha, e eu deixava enquanto lia algum gibi. Não lembro, mas deve ter morrido de velha. 3. Ravic, o ‘homem’ da minha vida. Vivemos relação apaixonada. Câncer demolidor o matou na flor da idade, aos 6 anos – em 19 de fevereiro de 2005. Eu o ressuscitei quatro anos depois e o transformei no narrador do meu terceiro romance: Um Náufrago Que Ri]

[Queria muito adotar outro gato. Não posso. Por isso me mortifico quando encontro gatos atropelados  nas ruas desta Macondo desidratada. Por isso  me aproximo dos esfomeados gatos, ofereço-lhes nacos de comida, lhes faço mimos, e tento conversar. Às vezes são receptivos. Às vezes fogem – temem que sejam estripados: períodos trevosos da história (des)humana nos quais eram exterminados em série os marcaram para sempre].

Chega de digressões. Voltemos ao gato do segundo parágrafo. Cinzento tigrado, cópia fiel de Ravic, a saudade me entorpece. Aproximo-me. Tento lhe fazer afagos.  Ele se assusta e foge – às tontas e em desembalada carreira. Com olho vejo o clone do Ravic atravessando a rua, desgovernado. Com outro enxergo táxi branco descendo a ladeira a toda velocidade, descontrolado.

Pergunta lógica e dedutiva: o clone de Ravic será esmagado pelo automóvel? Paranoia: eu serei o culpado pela morte do clone de Ravic. [Meno male. O atropelamento não ocorre. Eu respiro aliviado depois de emitir grito abafado.

[Na volta da fisioterapia, encontro no mesmo lugar de antes o gato que quase matei. Ele me olha com raiva. Eu o encaro com langor, e digo: - Sou gente boa. Por que fugiu de mim e quase morreu? Ele sorri. Eu sorrio. Nós sorrimos].