A sensação do perdido ardendo nos tornozelos

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  • Kátia Borges

Publicado em 14 de março de 2021 às 07:00

- Atualizado há 10 meses

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Tudo que vemos no mundo depende do grau e do arco. Até no céu que contemplo, enquanto você também vê, quem me garante que lê os mesmos astros que eu? Há tanta confusão em Vênus na conjunção com Saturno. Melhor deixar ao noturno aquilo que não faz parte. O dia a dia é a arte de desafiar o que ilude.

Desaprendemos silêncios, na curva grande do espaço, quando o que vem lá embaixo, enfim mede o horizonte. Por mais que os cegos apontem, enquanto não nos alcança, mal vemos o destino do bonde, que passou um minuto antes. Voltamos pálidos para casa, com a sensação do perdido ardendo nos tornozelos.

Drummond sem a esperança vencendo as ruas inúteis, buscando aquecimento no limiar do que é verso, imerso na prosa antes. A beleza talvez não salve, mas nos resguarda do fardo, um fado cantado em Lisboa, a Estação Santa Lucia, a arquitetura dos prédios antigos no Marco Zero. Olinda secando ao Sol. Iemanjá, Rio Vermelho.

No tempo em que o eu era longe, tudo parecia imenso. O muro de meio metro que dividia os dois becos. A praia do Cantagalo. Antes de haver uma placa com o nome de meu avô na entrada estreita da vila. Quando a areia e o mar me pareciam infinitos e eu nem reparava os casebres onde viviam os vizinhos.

O candeeiro aceso nas noites em que faltava luz, o circo com bichos selvagens e até o som dos ponteiros, tiquetaqueando alto, na sala de minha avó. Também não notava no circo os elefantes sofridos, os leões no limite da fúria, os cavalos trotando açoitados, e os domadores sorrindo na arena, rente às cadeiras.

Medo só mesmo do escuro, a aranha caranguejeira no teto alto da casa onde viviam os meus tios. Nas idas para a fazenda, o verde morno das vacas, o amanhecer na varanda, cantando e contando histórias. Domingo era silêncio tenso que deslizava entre os largos. Mares e Roma nas pontas da longa pista de asfalto sinalizavam extremos.

O mundo era tão pequeno e, no entanto, um universo. E eu nem pensava em nada porque sentir era muito. Meu pai me exibia aos amigos no balcão do Bar do Pelé, a menina loura que sabe responder a tudo. Em algum ponto da infância calei de espanto, de algo que não sei. De algo que, se sei, não conto.