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Malu Fontes
Publicado em 13 de novembro de 2017 às 09:17
- Atualizado há um ano
Há exatos sete anos, escrevi um texto intitulado “A fita branca”, citando o filme de Michael Haneke para falar do que então estava acontecendo no Brasil: intolerantes à espreita de gays os acuavam no meio da rua e os espancavam somente pela anomalia de não saber lidar com a sexualidade alheia. Agora, quase uma década depois, recebo pelo aplicativo de uma rede social esse mesmo texto e a experiência de relê-lo não foi das melhores.
A sensação, ao voltar a ler o que eu mesma escrevi, foi a de que, de lá para cá, a doença da intolerância se alastrou com intensidade no país e avançou por territórios que, naquele período, sequer imaginava-se, como a arte, a cultura, o pensamento crítico e artistas e intelectuais cuja obra se relaciona à reflexão sobre gênero, sexualidade e direitos humanos. O filme é uma metáfora do quanto o ódio já estava se gestando na Europa, como o ovo da serpente, até eclodir na 1ª Guerra Mundial. É um filme sobre as origens do nazismo.
Córneas O Brasil da última década andou a passos largos rumo à onda de ódio e intolerância que ainda promete crescer. Na semana passada, o cenário visto no aeroporto de Congonhas contra a filósofa americana Judith Butler tornou-se um dos pontos mais ilustrativos de onde chegamos. Por discordar das ideias de Butler sobre feminismo e construção social dos papéis de gênero, ou seja, de como se dão os processos sociais de formação dos comportamentos e da sexualidade dos homens e das mulheres nas sociedades, um grupo organizou algo parecido com uma emboscada num dos maiores aeroportos do mundo.
Em imagens veiculadas em todo o mundo na imprensa e nas redes sociais, vê-se duas mulheres e um homem xingando-a, na área do check-in, de pedófila, assassina, porca, destruidora de famílias e corruptora de menores. Aposto córneas e rins se alguém daquele trio trevoso algum dia leu um artigo ou um livro de Butler ou assistiu a alguma conferência ou palestra feita por ela. E tampouco entendeu ou é capaz de entender o que ela escreve ou fala.
Carrinho O conhecimento sobre Butler era tanto que nem seu rosto os protagonistas dos xingamentos eram capazes de reconhecer. O trio passou a seguir e perseguir com ódio a companheira da filósofa, Wendy Brown, certos de que ela era Butler. Para agredi-la fisicamente, uma das mulheres que a xingavam avançou contra as pernas de Wendy com o carrinho de bagagem. Para dar os devidos contornos do surrealismo e da banalização do ódio contra as ideias que caracterizaram tão bem a era medieval, o protesto foi comemorado pelo inclassificável Alexandre Frota, um dos porta-vozes desse tipo de manifestação.
Ainda há tempo de matar a serpente brasileira da intolerância e do aprisionamento das manifestações culturais que age em nome de uma determinada moral e dos tais bons costumes. Reacionários conservadores que ainda não largaram as fraldas estão se arvorando a dizer o que podemos ver ou ouvir no cinema, nas galerias e nas salas de aula e de espetáculos.
Músculos As serpentes vigilantes do comportamento alheio dizem que a economia e a política no Brasil são temas com os quais quem deve se preocupar é a elite. Seus porta-vozes, por considerar a sociedade geral completamente burra, decidiram que vão guiá-la, segundo palavras literais ditas à imprensa, baseados no tripé “filosofia grega, direito romano e religiosidade judaico-cristã" (sic). Seria risível não fosse tão trágico. Um ovo já eclodiu e de dentro saiu uma serpente no meio de um aeroporto. Os contrários a isso vão esperar a serpente encorpar-se como os músculos de Alexandre Frota, enquanto outros ovos apresentam sinais de nascimento na casca?