Abandonados: com pedaços faltando, orixás do Dique do Tororó precisam de reparos

Estimativa do arquiteto Tatti Moreno é que custaria em torno de R$700 mil

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  • Marcela Vilar

Publicado em 13 de agosto de 2021 às 05:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva

Limo, rachaduras, pichações, sem braço ou um dos dedos. Esse é o estado dos orixás do Dique do Tororó, que estão ali desde 1998. Nesses 23 anos, somente um restauro foi feito, em 2019, quando o braço de Oxumaré caiu. Agora, é Ossain que está sem um dos membros do corpo. Mas não são só eles que estão em decadência. Segundo o artista plástico Tatti Moreno, criador das esculturas, é preciso uma reforma geral, em todos os monumentos – nos oito da água e nos quatro em terra. Isso custaria, segundo Moreno, cerca de R$ 700 mil.  

O CORREIO esteve no local na tarde de ontem (12), para observar de perto o estado dos orixás. Nas esculturas em terra, o limo já cobre parte do rosto de Oxóssi, além de pichações em amarelo que desconfiguram a parte de baixo de sua roupa. Já Ossain está sem um dos dedos da mão direita.

 “Está realmente na hora de uma restauração total. Tem uns piores que outros, mas, do jeito que está, se não for recuperado, cada dia será uma deterioração maior e, talvez, possamos perder o conjunto todo, que é um dos cartões postais da Bahia. O risco de cair é iminente. Precisamos restaurar urgente, para salvar aqueles orixás. Todos estão em decadência”, alerta Tatti Moreno.  

Em 2019, quando o braço de Oxumaré caiu em um ato de vandalismo, o arquiteto disse que teve que restaurar ele todo, principalmente porque os braços estão conjugados. No caso de Ossain, o mesmo terá de ser feito. “Farei balsas em volta de cada orixá, com andaimes em cima, para que empregados restaurem a parte de fora e de dentro, que só vou saber a real situação quando olhar debaixo da saia”, explica.  

De acordo com Moreno, a previsão de cada restauração é de um a dois meses. Para reformar tudo, será em torno de um ano. O levantamento de custos ainda não foi discutido com a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia  (Conder), do governo do estado, que é responsável pelo equipamento. Com o aumento de preço dos materiais, uma nova apuração terá de ser feita. 

"São 20 anos de abandono. O certo que o governo tinha que fazer era uma manutenção de 30 em 30 dias. Se gastaria muito pouco, coisa de R$ 8 mil, e os orixás estariam sempre limpos e perfeitos. Não precisaria gastar um dinheiro desse. Mas há um desinteresse público, só tomam a iniciativa depois que algo grave acontece”, critica.  

Responsabilidades Diante da situação das esculturas, um movimento nacional de mulheres de religião de matriz africana enviou um manifesto às autoridades para que se faça algo sobre o tema.  O documento foi enviado ao Ministério Público da Bahia (MP-BA), Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Governo do Estado da Bahia (Sedur-BA),  Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado da Bahia (Sepromi-BA) e  Secretaria de Cultura do Governo do Estado da Bahia (Secult-BA). 

O MP-BA, a Sedur-BA e Sepromi foram procurados, mas não deram resposta até o fechamento da matéria. A Secult disse que não poderia se pronunciar, porque a responsabilidade é da Conder que,  por meio de nota, informou que “está em tratativas com Tatti Moreno, escultor dos orixás do Dique do Tororó, para a realização de manutenção nos monumentos”. Segundo a Companhia, a requalificação de duas esculturas, a de Oxalá e Iemanjá, ambas localizadas no espelho d'água, está prevista ainda para esse semestre. Não houve resposta sobre a conclusão do caso de vandalismo ocorrido em 2019.    As peças apresentam rachaduras e pichações e até falta de determinadas partes (Foto: Marina Silva) Descaso é uma forma de racismo, afirma ialorixá

O cientista social Alexandre San Góes, que fez pós-graduação na Universidade Federal da Bahia (Ufba) sobre as esculturas do Dique, afirma que os orixás sustentam a história da cultura afro-brasileira. “Ali é um território negro. Existe uma reminiscência às memórias, às construções culturais do povo afro. Ainda hoje, você vê várias manifestações, como oferendas a divindades, porque ali é a bacia de Oxum”, explica Góes.

Oxum é rainha das águas doces, segundo o candomblé e a umbanda. "Onde tem a água é o princípio da divindade. Por isso que se torna um espaço que tem um vínculo com a natureza, mas termina sendo não só um espaço de lazer, turismo, é o resgate de uma memória”, acrescenta.  

A antropóloga Naira Gomes, uma das fundadoras da Marcha do Empoderamento Crespo, já deixou algumas oferendas ali. “Os espaços de água doce são sagrados. Minha orixá representa água doce, que lava, que fertiliza, sem a qual a gente não vive. Para mim, o Dique é muito importante, já coloquei muito ebó ali. Gosto de agradecer, de pedir coragem e me fortalecer”.   Além do cuidado das autoridades, ela diz que é preciso zelo das próprias pessoas que frequentam o espaço. “As pessoas de axé também têm que cuidar melhor do Dique. Elas colocam laço, embalagem de plástico, deixam garrafa de alfazema... E orixá vive de energia, e não de sujeira, bagunça. Vive de dedicação e zelo”, pontua Naira Gomes.  

A ialorixá do Axé Abassa de Ogum, Jaciara Ribeiro, também ativista contra intolerância religiosa, encara o descaso como uma forma de racismo. “Percebo um descaso muito grande. Quando é monumento ligado a outra religião fundamentalista, eles preservam e cuidam. Agora deixar chegar no ponto que chegou, danificados e maltratados, nada mais é do que racismo e intolerância religiosa”, defende.  

Ela argumenta que as esculturas representam não só religião, mas resistência. “Os orixás no Dique são a demarcação do território, no sentido de coibir a intolerância religiosa. A gente precisa entender que ali, além de ser um espaço que reverencia as religiões de matriz africana, é um espaço sagrado”.  Indignada, afirma que “se o governo não tomar nenhuma posição, nós de religião africana vamos ter que ir lá fazer essa manutenção. Mas é muito complicado, porque os orixás estão dentro da água e são monumentos grandes. Expresso aqui meu repúdio para o descaso do governo”, conclui. 

Segundo o documento enviado pela Rede de Mulheres de Axé do Brasil, desde a inauguração das esculturas dos orixás, várias pressões dos movimentos evangélicos ocorreram. Eles “sempre protestaram contra a instalação, até mesmo com ataques físicos e sob a acusação de que seria um conjunto de fetiches e ídolos diabólicos”, relatam. Projeto já tentou retirar os orixás do Dique (Foto: Marina Silva) Relembre polêmicas com os orixás do Dique 

Em 2014, o monumento dos orixás do Dique foi algo de campanha na Assembleia Legislativa da Bahia (AL-BA), tendo com plataforma eleitoral “transposição dos orixás” do Dique para algum espaço privado de candomblé. O argumento era “tolerância zero” às esculturas.  

Já em 2015, a Câmara Municipal de Salvador aprovou uma proposta de indicação da vereadora Cátia Rodrigues ao prefeito para colocação de uma Bíblia no espaço. Não foi executado, devido veto do prefeito. Em 2011, foi apresentado na AL-BA um projeto com a mesma reivindicação. A matéria foi arquivada, após ter voto favorável em uma Comissão Diretora. 

*Sob orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro