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Admirável mundo velho

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 2 de março de 2020 às 05:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

George Steiner, crítico literário, ensaísta e filósofo franco-americano, morreu há quase um mês, aos 90 anos. Era um intelectual prodigioso, de opiniões firmes, cuja obra eu gostaria de conhecer mais profundamente. Na mesma semana, o El País publicou uma entrevista póstuma de Steiner, na verdade uma conversa íntima com um velho amigo, o ensaísta italiano Nuccio Ordine. Havia um acordo entre ambos para que a conversa só fosse publicada após a partida de Steiner, o que foi devidamente cumprido. Trata-se de um testemunho comovente sobre a relevância da cultura e o valor da beleza como conquistas da civilização. Mas é muito mais do que isso.

Steiner fala sobre memória, amizade, velhice, remorso, amor e muitos outros temas tão caros à vida humana. Alguns trechos me emocionaram particularmente, como este: “Nesta fase as lembranças do passado se tornam o único e verdadeiro futuro interior. É uma viagem para trás baseada na memória, o que nos permite alimentar algumas esperanças. Não dispomos das palavras exatas para definir a lembrança que o amanhã encerra em si. Estou em um momento da minha vida em que o passado, os lugares que frequentei, as amizades que tive, a impossibilidade de ver as pessoas que amei e que continuo amando e até a relação com você constituem o horizonte do meu futuro mais do que pode ser o futuro real.”

Steiner foi embora apenas quatro meses depois da partida de outro monstro sagrado da crítica literária, o norte-americano Harold Bloom, aos 89 anos. Quando homens dessa estatura estão abandonando o mundo sem deixar peças de reposição, percebemos que há algo de muito errado com o mundo. Porque sem eles perdemos não apenas uma erudição quase infinita, que abarca alguns dos mais diversos campos do saber. Perdemos também uma forma muito peculiar de pensar a humanidade e de lutar, mesmo que inutilmente, para que ela não sucumba à barbárie.

Em alguns momentos de particular ceticismo, me sinto como o personagem de Tommy Lee Jones em Onde os Fracos Não Têm Vez, a estupenda adaptação dos irmãos Coen do livro de Cormac McCarthy. Ao se deparar com um nível de brutalidade não só avassalador, mas sobretudo incompreensível, o policial vivido por Jones acaba prostrado pela perplexidade e por um sentimento de inadequação, como se o mundo no qual foi concebido não existisse mais. Sua expressão de pasmo é a mais perfeita tradução do título original do filme, algo como “não há país para homens velhos”.

O escritor Eduardo Galeano certa vez afirmou: “Este mundo de merda está grávido de outro”. Era uma afirmação otimista, dita em meio a uma manifestação na Espanha. Intelectual de esquerda, Galeano via naqueles jovens uma possibilidade de concretização da utopia de um mundo mais digno. Mas – me pergunto, neste momento de descrença – e se este mundo de merda estiver grávido de outro mundo de merda? E pior: despovoado de pensadores como Steiner, Bloom e o próprio Galeano? Quando um cadáver até então devidamente sepultado, que atende pelo nome de fascismo, reaparece para nos assombrar, parece evidente que o rebento já nasceu – e puxou ao pai.