Adolescentes contam e discutem o 'combinado' de cada casa na pandemia

Isolamento forçado motivou acordos entre os jovens e seus pais

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  • Da Redação

Publicado em 14 de março de 2021 às 06:15

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arte: Quintino Andrade/CORREIO

Afastem os pais e responsáveis da sala, pois esta resenha é para menores de 18 anos. Não é mais spoiler a necessidade de ficar em casa, por conta do coronavírus. Porém, ninguém avisou que deveria ser  com os adultos em tempo integral, né? Se a pandemia criou o confinamento, os pais foram lá e inventaram os combinados. Após um ano prisioneiros do próprio lar, sua casa já tem isso? Pois você não está só.  Por mais que pareça chato, o combinado é necessário e uma via de mão dupla. Enquanto os velhos ‘sugerem’ afazeres, como manter o quarto limpo e assistir as aulas online, crianças e adolescentes ganham, em troca, a possibilidade de jogar online por mais tempo ou conversar com os amigos no WhatsApp, por exemplo. Contudo, como o próprio nome já diz, é importante que todos combinem as regrinhas juntos. Se não for assim, é golpe.  Para boa parte da turma que resenhou com o CORREIO, o problema não é o combinado, que difere pouco de uma casa pra outra. Barril mesmo são as consequências para  quem vacila e não cumpre sua parte nas combinações. As irmãs Luma Fagundes, de 11 anos, além de Nathalia, de 14, foram verdadeiras noobs  (dê um Google, pais). Elas não tomaram banho na hora certa, tampouco arrumaram o quarto, como combinado. O vacilo rendeu  18 horas sem seus celulares. Não vale rir. A parada foi tão séria que ficou conhecida na casa como a revolta dos excluídos digitalmente. “Eu acho justo (os combinados). Todos na casa devem colaborar com as atividades, mas mudaria o fato de tomarem nossos celulares quando erramos. É complicado manter tudo limpo o mês inteiro. Luma é bagunceira e eu também!”,  se explicou Nathalia.“Eu levei o celular das duas para o trabalho, só entreguei quando cheguei. Deixei apenas o celular do irmão, que fez todas as obrigações. Isso gerou ainda mais revolta na casa”, conta a mãe, Arilma Fagundes. Nathalia e Luma utilizam seus celulares para gravarem vídeos pro TikTok, navegarem nas redes sociais e assistirem séries.  Multiverso O mundo parece ter virado a terceira temporada de Stranger Things, com o Demogorgon no papel do coronavírus. Para fugir disso, os aparelhos eletrônicos se tornaram os portais para universos paralelos ou jogos online, o que dá no mesmo. O problema é que jogo online não tem pausa e, se deixar, ficamos o dia todo lá, com os amigos. É preciso limitar este tempo no multiverso.

Com um ano de pandemia no Brasil, João Antônio viu apenas um amigo pessoalmente neste período, ano passado. Mesmo assim, ele não sente falta. “Existe o isolamento social para quem não tem acesso à internet e tecnologias. Fora isso, não vivemos isolamento social. Apenas físico. Se eu cumprir todos os combinados durante a semana, posso jogar com meus amigos no fim de semana. Uma turma, eu encontro no Fortnite e outra galera, no Call of Duty, dois jogos do Xbox. Conversamos e nos divertimos como se estivéssemos juntos. Claro que sinto falta de encontrá-los fisicamente, mas as tecnologias estão ajudando muito nisso”, conta João, que tem regras mais rígidas durante a semana. “Ele só pode jogar de sexta-feira, a partir das 17 horas, até domingo, 20 horas. Ele some no quarto dele. Por isso, durante a semana não deixo pegar em jogo. No máximo, conversar no WhatsApp. Isso gera uns conflitos. Ele precisa estar na cama às 22 horas, mas me enrola. Resolve tomar banho faltando cinco minutos pra dormir. Não dá pra ficar correndo atrás de um rapaz de 15 anos”, disse a mãe de João, Luziane. “Apesar de algumas briguinhas, esta pandemia me deixou muito mais próximo dos meus pais”, pondera João. 

Marcelo Filho, 14,  tem um combinado, mas em duas casas. Com os pais separados, ele passa uma semana com o pai, outra com a mãe. Para Marcelinho, sua turma está bem adaptada a pandemia. “Ficar em casa está tranquilo pra mim. As únicas coisas que eu fazia antes do coronavírus era ir ao cinema ou ao estádio com meu pai. Fora isso, vejo meus amigos no mundo virtual, que não tem pandemia”, brinca Marcelo, exímio jogador de Free Fire.  “Meus pais fazem os mesmos combinados pra não me confundir. De manhã (6h40), escola. De tarde, inglês e banca (14h). Mantendo o quarto arrumado e estudando, posso jogar até umas 21 horas, desde  que não jogue com estranhos, apenas com meus amigos. Preciso dormir 22 horas. O jogo é uma forma de me divertir com meus amigos nestes tempos de pandemia. É como ir ao shopping sem sair de casa”, completa. O problema é manter a disciplina do combinado. “Já fui pego filando aula online. É assim: a gente desliga a câmera e joga no celular. Mas só fiz isso uma vez, juro”, se entrega Marcelinho.  Filho único, Everton Ribeiro já sabe que não pode quebrar os combinados. Aos 9 anos, ele alega que quebrar as regras as vezes é irresistível.“Eu não tenho preconceito com os combinados de minha mãe. Acordo na hora, estudo, me alimento, arrumo meu quarto e só jogo no tablet finais de semana. Mas é difícil. Eu não me seguro e fico com vontade de dar uma jogadinha escondido depois da aula. Mas eu sei que não pode. Já fiquei um tempo sem tablet porque  joguei bola dentro de casa.  É difícil demais”, diz.Olha a cobra! Ana Clara, 13 anos, e Kelly, 16, moram na zona rural de Camaçari, com sua mãe, uma irmã mais velha e a sobrinha. No início da pandemia, nada de combinados. Jogavam soltas. Passavam o dia todo no celular, comiam o que queriam e ninguém limpava a casa. Quando o bicho pegou, já no final do ano, a mãe resolveu impor o combinado. Elas lavam prato, precisam limpar o quintal todo dia, assistir aula online, dar comida para as galinhas e só ficar nas redes sociais até 22h, no máximo. Kelly odiava o prazo limite com o celular, pois as amigas ficavam a madrugada toda conversando pelo WhatsApp.

Contudo, uma visitante inesperada mudou as regras, para alegria de Kelly. Enquanto dormia, a mãe Maria Lúcia percebeu algo estranho andando por debaixo do lençol.  Era uma cobra nos pés dela. “Foi uma gritaria! Não sei como ela não me mordeu. Peguei trauma de cobra depois disso. Agora o combinado mudou aqui. Eu deixo a minha menina de 16 ficar até a hora que ela quiser no celular, desde que  vigie a casa contra as cobras. Quando ela vai dormir, me acorda. Eu vou para a cadeira da cozinha e durmo sentada o restinho da noite”, explica Lúcia. “O problema é que ela já está recebendo cantadas de alguns meninos. O combinado neste caso é não dar ousadia pra marmanjo”. Escapadas É como um tigre na jaula. É difícil para alguns adolescentes mais velhos segurarem a vontade de sair e aglomerar. Não é o caso de Luiza Libório, que soube bem administrar sua adolescência, convívio com os pais e combinados. “Eu sou na minha, não tenho esta coisa de sair. Tenho consciência dos meus afazeres e sei como conviver com meus pais. Lavo prato, limpo a areia dos gatos, estudo, deixo meu quarto organizado e faço exercício físico em casa. É algo automático. Eu não consigo sair nesta pandemia. Sinto culpa, pois me coloco no lugar dos outros”, diz Luiza, de 17. Ivair Júnior e Pedro Henrique até tentaram, mas não conseguiram. Eles são irmãos e os pais possuem um mercado em Jauá, Camaçari, onde eles trabalham.“É complicado falar sobre isso, pois estou vivendo como se não houvesse a pandemia. Tomo cuidado com meus pais, meus avós, mas não deixo de sair, encontrar meus amigos. Uma vez ou outra vou pra alguma aglomeração. Uma vez fui numa festa com 50 pessoas, ninguém com máscara. Ali fiquei com medo e fui embora. Aí já é demais, né?”, lembra Ivair, que acabou de fazer 18 anos.O irmão, com 15 anos, prefere ficar mais em casa, mas confessa não cumprir todos os combinados. “Quando começou essa pandemia, eu fiquei horrorizado. Mas foi passando os meses, eu via meus amigos aglomerando, não teve como me conter. Tive que aglomerar também. Dos combinados com minha mãe, não estou bem na escola, confesso. Assisto aula online às vezes. Na aula, eu ligo o celular e finjo que estou assistindo a aula”, revela. Pelo menos o  confinamento diminuiu  as brigas entre eles. “Só tem briga quando ele pega minhas camisas ou eu uso as cuecas dele. Aí o pau come”, disse Ivair. Aí não tem combinado certo...