Antes da internet, Salvador já ‘cancelou’ bloco de índios e criminalizou beijo roubado

Nova onda da web, cancelamento virtual que deu caldo em Alessandra Negrini está 60 anos atrasado em relação à folia baiana

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  • Da Redação

Publicado em 22 de fevereiro de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Apaxes entrando na Avenida em 1998 por Foto: Divulgação

Foto: Francio de Oliveira/Instagram Tudo o que você posta na internet pode ser usado contra você. Este texto, inclusive. Às vésperas e durante o reinado de Momo deste ano, os tuiteiros ficaram em polvorosa com a mais nova tendência virtual: a política de cancelamento.

Pois sim. Das grandes até as pequenas coisas, tudo pode ser motivo para o banimento definitivo. Se disser algo que desagrade, contrarie ou fuja do consenso você pode vir a ser automaticamente rescindido, riscado ou anulado – assim como fazemos com um serviço de internet, TV a cabo ou revista por assinatura.

Não quero exatamente discutir este comportamento de exclusão. Até porque em casos extremos mostram-se realmente necessários. Só queria lembrar que, neste exato momento, tudo o que os internautas estão usando como argumento para cancelar arrobas já foi feito por Salvador nos últimos Carnavais. Ou seja, zero novidades neste quesito.

A atriz global Alessandra Negrini, por exemplo. Sofreu na semana passada um linchamento cibernético por se fantasiar de índia no bloco Acadêmicos do Baixa Augusta, em São Paulo (e existe Carnaval em São Paulo?). Os detratores defendem que ela se apropriou da cultura dos povos originários. “Etnia não é fantasia”, repetem, em mantra. Resultado: foi cancelada.

Blocos de índios Por aqui, na Bahia, o cancelamento a este tipo de criação se deu de maneira muito mais natural e como um processo evolutivo da própria festa.

Fortes na década de 1960, os blocos de índios em Salvador já caíram em desuso há muito tempo. Antes da popularização dos trios, grupos musicais como Caciques do Garcia, Commanche do Pelô e Apaxes do Tororó eram referência de musicalidade (tocando marchas juninas e sambas), além de inspiração na vestimenta e animação na folia.

É curioso observar que estes blocos não eram inspirados em etnias brasileiras, mas, sim, norte-americanas. Os Comanches são um grupo nativo que ocupou grandes extensões de terra no que hoje é o estado do Texas. Eles tinham domínio na montaria de cavalos e criavam búfalos. Eram bem diferentes de muitas das tribos brasileiras, tanto em costumes quanto em organização societária.

Já os Apaxes concentravam-se na região do Arizona e eram descritos como exímios caçadores. Ambos foram dizimados pelos homens brancos nas campanhas de expansão do território americano – a famosa Marcha para o Oeste.

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Este movimento foi romantizado sob a insígnia da coragem e bravura e virou tema de diversos filmes aventurescos no cinema, sobretudo a partir dos anos 1930, num gênero que ficou conhecido como western (aqui no Brasil, virou filme de faroeste ou, simplesmente, bang-bang).

E é exatamente por conta destes filmes, exibidos aos montes nos cinemas de rua da cidade, que os blocos de Salvador adotaram estas referências estrangeiras, sonegando homenagens a etnias como os Pataxós, Tupinambás, Xingus, Caiapós, que dominaram nosso território até sofrer com o genocídio dos colonos portugueses.

A decadência dos blocos de índio, em Salvador, é muito explicada pela africanização da festa, em movimento iniciado a partir dos anos 1970 – com forte inspiração nas ações pelos direitos civis dos negros americanos, de Malcom X e Martin Luther King.

O surgimento do primeiro bloco afro do Carnaval, o Ilê Ayê, em 1974, puxa uma reação em cadeia de valorização da cultura negra, com discurso centrado no combate ao racismo e defesa da musicalidade, dança e beleza ancestral.

Em 1972, Gilberto Gil volta do exílio (ele e Caetano haviam sido expulsos do país pela Ditadura Militar) e inicia um processo de resgate do afoxé Filhos de Gandhy, que vivia uma decadência profunda com baixa em seu número de associados.

Em 1978, o afoxé Badauê, por iniciativa dos moradores do Engenho Velho de Brotas, entre eles o Mestre Moa do Katendê (1958-2018), reforça este fluxo de transformação, que vem acompanhado do Malê Debalê, Muzenza e, mais tarde, o Olodum.

Aos poucos, os blocos de índios americanizados foram naturalmente perdendo terreno na festa (sem uma ação orquestrada de cancelamento) para dar vez a um discurso muito mais politizado e ligado à cultura afro-brasileira.

Ainda hoje, os Apaxes do Tororó saem no Circuito Osmar (Campo Grande), embora não sejam nem sombra do que já foram em tamanho e projeção. Como efeito positivo, a direção do bloco passou a olhar para as tribos indígenas nacionais (convidando-as para o desfile) e engrossar o coro em defesa da remarcação de terra.

Beijo roubado A internet, felizmente, não é um celeiro apenas para indignações zuretas.  Um dos movimentos interessantes que ganha fôlego nas redes é o feminismo digital, questionando comportamentos abusivos dos homens.

No Carnaval, o assédio constante é motivo para campanhas de conscientização, como “respeita as mina” e “não é não”. Na capital baiana, vanguarda sempre, um homem foi condenado, de forma inédita, por tentar beijar à força uma mulher no Carnaval de 2008. A pena foi de sete anos de prisão – sendo um deles cumprido em regime fechado.  

A denúncia oferecida pelo Ministério Público da Bahia relata que o "denunciado foi preso em flagrante delito por ter agarrado o pescoço da vítima, dando uma 'gravata', sendo que, após imobilizá-la, beijou a sua boca por várias vezes sem consentimento".

Enquanto as arrobas trabalham no cancelamento, o Carnaval de Salvador cria novas dinâmicas e abre matrículas para expandir seu ensino.