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Paulo Sales
Publicado em 23 de março de 2020 às 05:00
- Atualizado há um ano
Em Veneza, cruzeiros, gôndolas e vaporettos deram lugar a golfinhos, cisnes e peixes nos canais da laguna. Uma cidade deserta, despida das habituais multidões e do canto desafinado dos gondoleiros. Como uma cidade fantasma, o que ressalta ainda mais sua beleza avassaladora. Em Paris, apenas espectros esparsos passeiam pela Champs-Élysées com lojas e cafés fechados. Em Madri, a Plaza Mayor está envolta em inusitado silêncio. Em Roma, os confinados cantam nas sacadas o lindo hino anti-fascista Bella Ciao. E em várias cidades do Brasil, o silêncio só é interrompido às 20h30 pelos panelaços dos nossos confinados, que sinalizam o início da derrocada do fascismo tropical.
As bolsas despencam e se prevê uma recessão global, mostrando o quanto a volatilidade do capital especulativo não pode ser levada tão a sério. Por outro lado, a emissão dos gases de efeito estufa foi reduzida drasticamente. O mundo também produz menos lixo, consome menos, se resguarda. Porque sabe que tempos difíceis estão por vir – ou melhor: já chegaram. Não há nada parecido desde a Segunda Guerra Mundial. É estranho (mas não desagradável) passar quase todas as horas do dia em casa. É estranho saber que o nosso restaurante preferido acaba de fechar as portas por tempo indeterminado. Que os jogos do Flamengo estão em compasso de espera. Que não há a menor ideia de quando essa zorra toda vai acabar.
Leio Proust. No Caminho de Swann, primeiro volume da epopeia memorialística Em Busca do Tempo Perdido. Volto à França de pouco mais de 100 anos atrás, a uma Europa prestes a se envolver no primeiro dos dois conflitos sanguinários que devastaram o continente. Era um mundo onde se consumia, ao menos nos meios mais abastados, quantidades enormes de alta cultura. Fazia parte do cotidiano, das conversas à noite com as visitas, dos introspectivos hábitos diários. Admiro e invejo esse tempo, e através dele me abstraio da quarentena a que estou submetido.
Acho que tiraremos algum aprendizado disso tudo. Para além das mensagens motivadoras cheias de platitudes, vejo um aspecto positivo da pandemia que nos assola: com as desonrosas exceções de sempre, estamos exercitando a alteridade, a empatia, o olhar compassivo sobre a tragédia alheia. Afinal, temos tempo disponível para isso. Como há muito não ocorria, volta-se a dar a devida importância aos estados de bem-estar social, essa rede enorme que ampara quem cai e o ajuda a levantar.
Sabemos que o canto dos confinados em Roma embute um sofrimento profundo: dos pacientes às centenas que não conseguem ser atendidos e morrem sozinhos, sem despedida, sem sequer um enterro digno. Como se manter indiferente a tamanha tragédia? Como não se compadecer com essa desgraça que ultrapassa fronteiras, costumes e idiomas? Estamos juntos. E os que cantam Bella Ciao lá se irmanam com os que batem panela aqui. Porque a vida é feita de insatisfação, perda e dor. Mas também de estoicismo, afeto e solidariedade.