Após briga com a Marinha, comunidade quilombola do Rio dos Macacos recebe título de posse de terra

Quilombo recebeu o título após 11 anos de luta judicial com a Marinha; mediação foi feita pelo MPF

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  • Marcela Vilar

Publicado em 28 de julho de 2020 às 20:28

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arrison Marinho/CORREIO
Assinatura do documento pela representante quilombola no Incra por Arrison Marinho/CORREIO

Depois de uma luta de mais de 10 anos na Justiça, a comunidade quilombola do Rio dos Macacos, que fica na Baía de Aratu, em Simões Filho, finalmente conseguiu, na manhã desta terça-feira (28), o documento que dá o título de posse das terras que o Quilombo ocupa há mais de 500 anos. A entrega da “carta de alforria”, como a quilombola Rosimeire dos Santos descreveu, aconteceu na Superintendência Regional do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), sob a presença do Ministério Público Federal (MPF), órgão que mediou o impasse com a Marinha junto à Defensoria Pública da União (DPU). O MPF já tinha obtido liminar para formalizar a posse ao Quilombo em outubro de 2019, mas a assinatura do título só foi definitivamente  firmada nesta terça.

“Não é um simples documento, a gente tá assinando nossa carta de alforria”, relatou Rosimeire, de 41 anos, moradora do local e que coordena a Associação dos Remanescentes de Quilombo Rio dos Macacos. Ela foi uma das cinco representantes que assinou o documento. “É um dia muito importante, mas a luta na justiça foi pesada”, comenta outro integrante do Quilombo, Edcarlos Messias dos Santos, 44 anos. 

Apesar de considerarem um passo importante, os quilombolas reforçam que a luta está longe de acabar. Isso porque o título assinado nesta terça contemplou somente 98 hectares de uma área que, segundo o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do Incra publicado em 2014 no Diário Oficial, deveria ser de 301 hectares. “Vamos continuar lutando”, enfatiza Franciele dos Santos, 21 anos, filha de Rosimere. 

O relatório do Incra, por sua vez, só regularizou 104 dos 301 hectares que foram identificados como área quilombola, e seis destes estão hoje sob titularidade do Estado da Bahia. Por conta disso, só 98 hectares puderam ser repassados nesta terça. O MPF, no entanto, pretende buscar o entendimento para que os seis hectares restantes sejam em breve concedidos pelo governo estadual. A extensão total do Quilombo já chegou a 900 hectares. “É uma história de vida de mais de 500 anos”, conta Rosimere. Hoje, são 110 famílias que ali vivem, com um total de 500 pessoas.

Água Outro ponto importante relatado pelos moradores foi que o acesso a fontes de água - como o próprio Rio dos Macacos, principal recurso usado pela comunidade - não foi contemplado na delimitação dos 104 hectares. “Não existe uma comunidade rural sem água. A gente, que planta, necessita dela e deve ser um bem para todos”, reforça o quilombola Edcarlos.

O procurador do MPF/BA Leandro Bastos Nunes, que acompanha o caso, afirma que a busca pelo acesso à água, assim como a outras políticas públicas, vai continuar. “A luta não acabou. A gente vai tentar negociar com a Marinha e Ministério da Defesa para viabilizar esse compartilhamento da água”, esclareceu o procurador, que pontua ainda que a titularização da posse foi um grande avanço para a comunidade. 

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Após a assinatura, o Incra baiano irá providenciar o registro do imóvel em nome da Associação dos Remanescentes do Quilombo Rio dos Macacos. De acordo com o superintendente regional interino, Paulo Emmanuel Alves, esse é um momento ímpar para a regional do Incra na Bahia. “Com o título, regularizamos a situação dessas famílias e elas poderão acessar políticas públicas, tais como as de habitação e de acesso à água, além das modalidades do Crédito Instalação da reforma agrária”, explica Alves.

Luta antiga 

Durante todo o processo para a titularização, os quilombolas também relatam que sofreram constante ameaças dos oficiais da Marinha - que ocasionaram mortes -, espancamentos e até assédio às mulheres da comunidade. “A gente vivia uma verdadeira tortura na comunidade, sendo espancado pelos militares. Essa titularização foi sangrenta, porque morreu muita gente para ela poder sair”, relata Edcarlos, que perdeu o pai por infarto após, segundo ele, constantes discussões com os oficiais da Marinha. Foi aí que, em 2011, o MPF abriu um inquérito civil para supervisionar esses conflitos. No relatório do Ministério Público, a associação relatou “ser alvo de ações de coação na intenção de expulsar as famílias residentes no local”. Naquele mesmo ano, o MPF propôs ainda que a Justiça determinasse a permanência da comunidade na área.

Contudo, em agosto de 2012, a Marinha conseguiu uma decisão favorável da Justiça Federal na Bahia, que determinou a desocupação de área pela comunidade quilombola. O MPF interviu novamente e recorreu da decisão ao Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Em outubro de 2013, foi feita ainda uma audiência pública sobre o tema, na qual o MPF buscou chegar a um acordo entre a Marinha e os integrantes do Quilombo sobre o conflito de terras. No mesmo mês, o órgão solicitou ao Incra a publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território.

Em janeiro de 2014, o Ministério Público expediu uma nova recomendação à Marinha, na intenção da remoção dos militares envolvidos em supostos casos de agressão relatados ao órgão. Em maio de 2014, o MPF e a Defensoria Pública da União na Bahia (DPU/BA) ajuizaram ação conjunta contra o Incra buscando a publicação do RTID, que só foi publicado em agosto daquele ano. Relembre os trâmites judiciais aqui. 

Antes disso, a primeira vez que a briga pela posse das terras chegou na Justiça foi em 2009, quando a Marinha protocolou a primeira de quatro ações de desapropriação de terra contra os quilombolas. O embate, porém, já dura mais de 50 anos. Ele começou em 1970, quando os militares iniciaram as obras para construir a barragem no Rio dos Macacos, que hoje abastece a Base Naval de Aratu. 

Por meio de nota, a Marinha se pronunciou dizendo que “não exerce nenhuma atribuição no território ora titulado para a comunidade Rio dos Macacos desde junho de 2016, quando o terreno foi revertido para a Superintendência do Patrimônio da União na Bahia”. A Força ainda disse que “continua acatando as decisões administrativas e judiciais, cumprindo aquilo que efetivamente lhe compete e cooperando ainda com os demais órgãos, dentro das suas possibilidades e limites legais”. Confira abaixo, na íntegra, a nota enviada pela Marinha. 

A Marinha enviou, na manhã desta quarta-feira (29), nova nota de esclarecimento: 

"Em relação a questões ligadas à violência, importante frisar que a missão constitucional da Marinha está relacionada com a defesa do País e de sua população, razão pela qual esta Força não compactua com atos de opressão e violência, prezando sempre pelo cumprimento às leis. Assim, as denúncias de ações violentas eventualmente ocorridas e registradas, tanto partindo de militares de serviço quanto de moradores da comunidade, tiveram o devido encaminhamento legal, por meio de Inquéritos Policiais Militares, os quais foram encaminhados à Justiça Militar para acompanhamento pelo Ministério Público Militar e demais órgãos competentes, adoção das devidas providências e, caso comprovadas as faltas, aplicação das sanções legais. Equivocadamente, a reportagem cita que as obras de construção da barragem Rio dos Macacos foram iniciadas em 1970. Na realidade, o projeto da barragem é de 1949, tendo ela sido construída entre 1957 e 1961. No entanto, a formação do terreno de posse da Marinha, para a construção da barragem artificial para abastecimento da Base Naval de Aratu, data do início da década de 50, quando a Força obteve três fazendas, de forma legal, conforme todos os documentos da época"

*Sob orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro