Artistas aplicam doses de alegria na fila de vacinação da covid-19

Sem renda e precisando sustentar a casa, Djalma Santos e Adilson Guedes tentam ganhar a vida durante a pandemia alegrando as pessoas

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  • Da Redação

Publicado em 18 de março de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Paula Fróes/CORREIO

Logo cedinho, antes das 7h, Adilson Guedes já está na fila de vacinação do 5º Centro de Saúde Clementino Fraga, com sua seringa preparada para a labuta diária neste momento de pandemia e imunização. São mais de oito horas no sol, muitas vezes sem se alimentar. Até parece, mas Guedes não é um agente de saúde que está vacinando no posto de saúde dos Barris. Na verdade, é um artista de rua tentando sobreviver sem a parte mais importante de sua profissão: a aglomeração de pessoas.

Artista plástico, Adilson está há um ano sem nenhuma renda. Desde o início da vacinação contra o coronavírus, ele resolveu colocar comida dentro de casa de um jeito diferente: fez uma seringa de três metros de altura e pesando seis quilos, toda de material reciclável. 

Junto com seu amigo e músico, Djalma Santos, ficam durante todo dia passando o chapéu nas filas de carro no posto de vacinação contra a covid-19. Na sua mochila, apenas o celular, uma garrafa com água, máscara reserva e álcool 70%. Refeição, apenas antes de sair de seu lar, em Amaralina, e quando chega à noite, depois das 19h. Entretendo os idosos que aguardam sua vez nos carros, os dois ganham, em média, R$ 80 por dia: 40 conto de cada.

“Há um ano eu estava fazendo receptivo itinerante para milhares de turistas que chegavam naqueles navios cruzeiros. Ganhava em euro ou dólar, um monte de parceiros, era o caminho certo que eu tracei para mim. Larguei meu emprego de gerente de unidade de saúde pra me dedicar a arte. Um mês antes de fechar um contrato com o Governo do Estado, pum. A pandemia. Acabou a festa”, lembra Adilson, integrante de um projeto artístico chamado Anima Salvador, que recepcionava turistas nos mais diversos pontos turísticos da capital. “Se não tivesse largado meu emprego na unidade de saúde, estaria lá dentro vacinando”, completa. Uma ironia do destino que ainda custa caro.

Por conta de ter um emprego fixo um pouco antes de tudo fechar, Guedes não conseguiu o auxílio emergencial. Casado e com uma filha na faculdade, precisou vender o carro para sustentar a casa durante 2020. Este ano, o dinheiro acabou.“Minha filha tem bolsa na faculdade, mas precisava de um celular para assistir aula online. Precisei vender meu Ford Ka e ir pra rua me virar. A recepção na fila é boa, as pessoas incentivam, batem palma, algumas até tiram foto com a seringa. Mas a colaboração é pouca. Muita gente não quer abrir o vidro, não quer pegar no dinheiro para evitar contágio. Eu entendo. São pessoas que estão com medo da covid, né? Nós também estamos, mas precisamos correr atrás”, conta o artista de 54 anos.Segundo Djalma, o dinheiro também depende muito da ajuda alheia e da economia que fazem. Eles evitam comer na rua para economizar e pedem carona aos motoristas de ônibus. Em uma dessas viagens, os dois artistas salvaram o dia. 

“Rapaz, subimos no ônibus Pituba/Lapa, quando reparamos que bandidos tinham acabado de anunciar um assalto. Imagine a cena. Lá estávamos nós, com um violão gigante de isopor e uma seringa enorme vendo os bandidos olharem pra nós sem entender nada. Ninguém esperava aquilo. Formou um climão tão grande, que eles desistiram do assalto e desceram do ônibus no ponto seguinte”, lembra Djalma.

Djalma é músico e também sofre com a pandemia. Casado e com dois filhos pequenos, a fila de vacinação é o único lugar que ele consegue tirar o sustento da família. Assim como o amigo Guedes, estava feliz como artista itinerante, cantando músicas baianas para turistas. 

“Em 2019, não conseguia mais conciliar o lava-jato que eu tinha com o trabalho artístico, que estava dando mais grana. Fechei meu negócio para me dedicar a arte. Mas digo a você que vale a pena e não me arrependo. Não vamos banalizar a arte por causa desta doença. Salvador é sinônimo de aglomeração, calor, carinho. Não sei se tudo será igual como era antes, mas a arte nunca vai morrer”, declara.

Geralmente a dupla fica no 5º Centro. Contudo, quando o movimento está fraco, eles vão para a Fonte Nova. Enquanto falavam ao CORREIO, algo curioso aconteceu. Um mendigo passou por eles, mas parou logo à frente. Retornou, pegou duas moedas de 25 centavos, depositou na caixinha dos artistas e seguiu seu rumo sem dizer nada. “Isso é o que precisa acontecer durante esta pandemia. Se até um mendigo tem a sensibilidade de ajudar, todos nós podemos fazer o mesmo. Não estamos com vergonha disso, muito pelo contrário. Carrego esta seringa de seis quilos nas costas, já nem sinto o peso. Mais pesado é ficar sem trabalhar com aquilo que amo”, finaliza Guedes, emocionado. O espetáculo não pode parar.