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Kátia Borges
Publicado em 15 de dezembro de 2018 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Fico realmente surpresa quando alguém menospreza a teledramaturgia brasileira. Meu primeiro impulso é tentar convencer a pessoa sobre o equívoco desse menosprezo. Para alguns, a rejeição absoluta a telenovelas equivale à posse de um gosto refinado. Mas é o senso comum que dita que todo folhetim televisivo é besteira, e é uma posição realmente confortável permanecer à margem de qualquer outra análise do gênero. >
Por ser consensualmente uma besteira, encerra-se aí toda conversa. Mas é fato que, nessas longas ficções seriadas, há representações da realidade bem mais complexas do que aquelas que se pode reconhecer em alguns romances literários. E olhe que esta minha defesa passa longe da posse de algum gosto refinado. Costumo surpreender os outros e atrair olhares de censura, ao contrário, quando admito que assisto novelas. >
Milhões de outros como eu ao redor do mundo. Para se ter uma ideia, apenas Avenida Brasil, de João Emanuel Carneiro, produzida pela Globo, chegou a 130 países. Acha muito? Maria do Bairro, produzida pela Televisa, alcançou 183. Não se trata apenas de gosto. Da Turquia à Índia, essas narrativas sobre os brasileiros de diferentes épocas são apresentadas a outros povos. Em alguns casos, suas tramas ganham tal receptividade que inspiram moda, modos e até mesmo o batismo de pessoas e lugares.>
Em Luanda, o Mercado Popular da Boavista, inaugurado em 1991 e fechado em 2011, virou Mercado Roque Santeiro. A trama de Dias Gomes foi censurada em 1975, sendo exibida dez anos depois em nova versão. Saramandaia e o Bem Amado, do mesmo autor, são ainda hoje a mais perfeita tradução da política brasileira. Esta última, vendida para o Uruguai em 1976, inaugurou a era da exportação de novelas, que teve seu auge com A Escrava Isaura, romance de Bernardo Guimarães adaptado por Gilberto Braga. >
Na época, a censura proibiu o uso da palavra “escravo” nos diálogos entre os personagens, substituído pelo termo “peça”, e cenas inteiras da história foram cortadas. A exibição internacional de Escrava Isaura foi um sucesso tão grande que o livro de Bernardo Guimarães virou best-seller na China e na Polônia e Lucélia Santos, que interpretou a protagonista, rodou o mundo ganhando prêmios. Em janeiro de 2016, quarenta anos depois de sua estreia, esse folhetim ainda ocupava o quinto lugar no ranking de exportação de novelas e séries da Rede Globo. >
Pesquisadores, em todo o mundo, e não é de hoje, estão atentos ao fato de que a ficção seriada não é besteira. Trabalhos acadêmicos, conduzidos por especialistas, analisam suas tramas, recepção e conexões com a realidade do país. Em 1990, uma tese sobre a novela Rainha da Sucata, de Silvio de Abreu, foi defendida pelo dinamarquês Thomas Tufte numa universidade da Inglaterra e, desde os anos 1970, os brasileiros voltam seu olhar para o estudo desse gênero. Na Bahia, há mais de uma década, o A-tevê, laboratório de análise de teleficção, coordenado pela professora Maria Carmem Jacob de Souza, na Ufba, forma novos pesquisadores na área. >
Então de onde vem, afinal, esse consenso? De certo modo, penso que seguem firmes as distinções entre a arte popular dos folhetins e outras ditas mais nobre e dignas de atenção. O que é detectável pelo senso comum como besteira vem da repetição de suas fórmulas, que tem base no melodrama. E tome-lhe tramas com vilões cruéis e mocinhas sofredoras, golpes da barriga e testes de DNA, revelações inusitadas, algumas bem risíveis, irmãos trocados e lições de superação. Botando de lado os entretanto e partindo para os finalmente, como diria Odorico Paraguaçu, ainda assim, o pano de fundo dessas narrativas, como poucas, dá pistas sobre como somos e como representamos nosso povo e nosso cotidiano.>
Kátia Borges é escritora e jornalista>