As intermitências da vida

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  • Paulo Sales

Publicado em 11 de maio de 2020 às 05:00

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Aos poucos, como quem pisa num terreno pantanoso, a normalidade retorna à Europa. Com prudência e sensatez, os europeus voltam a ocupar as ruas das suas cidades, ansiando pelo momento em que afinal seja anunciada a trégua, contida na frase que inicia e encerra As Intermitências da Morte, de Saramago: “No dia seguinte ninguém morreu”. Ah, que a morte regresse enfim às suas intermitências, a sua ladainha habitual, como o curso do Tejo que nasce na Espanha para desembocar em Lisboa. Sem abreviações ou rupturas maciças, sem solidões que não possam ser compartilhadas, sem lamentos para o vazio.

A Primavera atinge seu apogeu e, em breve, virão dias ensolarados que perduram até as nove, dez da noite. Os canais de Veneza voltarão a se infestar de gôndolas e vaporettos, expulsando os cisnes e golfinhos. Nas suas pontes e praças, passos e murmúrios voltarão a ser ouvidos. Invejo os que terão a sorte – como os primeiros animais da Arca de Noé a se aventurar em terra firme – de circular pela Piazzetta ainda despida da horda de turistas, vendo os garçons reabrindo os cafés da Piazza San Marco. Invejo os que primeiro voltarão às margens do Sena com uma garrafa de vinho e fatias de queijo para fazer um piquenique. Invejo os que primeiro sentarão num dos bares da Praça do Comércio para beber um gole de Alvarinho.

A Europa voltará à normalidade porque antes havia normalidade. O continente das guerras vive, enfim, em paz, e a ela retornará. Torçamos para que seja um belo Verão por lá. É um consolo para nós, embrenhados num Outono sombrio, ao qual deve se seguir um Inverno tenebroso. O Inverno da nossa desesperança, diria Steinbeck. Com um agravante: vamos demorar para voltar à normalidade porque antes já não havia normalidade. Somos personagens de um desvario que só faz recrudescer, e teremos um Inverno terrível porque lutamos não só contra um vírus, mas também contra um verme. O verme da estultice que ousa dizer o nome, da truculência festiva, da mais tola abjeção. O verme personificado na indagação torpe: “E daí?”.

Encarcerados, vemos os dias passarem sem pressa, quando o que mais precisávamos era que eles avançassem como numa máquina do tempo de Wells. Das ruas desertas, não vemos o massacre. Somos os afortunados que não frequentam o front improvável das UTIs, as trincheiras das enfermarias, os soldados vestidos de branco perdendo batalhas numa terra arrasada. Haverá alguma compensação para tamanha desdita? Seremos, os sobreviventes bem-comportados, brindados com alguma espécie de benevolência? Creio que não. Como diria Julian Barnes em O Sentido de um Fim, “premiar a virtude não compete à vida”.

Tenho lido elucubrações a respeito de como sairemos dessa borrasca. Eu mesmo já me aventurei a especular sobre o que nos aguarda. Mas quer saber? Sairemos os mesmos. Cometeremos os mesmos equívocos e padeceremos por eles. Impossível reprimir essa sensação de malogro, de um mau fado. Reféns do acaso, somos nada e somos muito. Como escreveu Vassili Grosman no portentoso Vida e Destino: “Viveriam como seres humanos e morreriam como seres humanos, e aqueles que haviam perecido tinham conseguido morrer como seres humanos, e aí residia sua amarga e eterna vitória sobre tudo de majestoso e desumano que houve e haverá no mundo, que veio e que se foi.”.