As repercussões do racismo na saúde mental

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  • Da Redação

Publicado em 4 de dezembro de 2018 às 05:05

- Atualizado há um ano

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Estudos internacionais e os poucos produzidos nacionalmente indicam que a saúde mental da população negra é diretamente afetada pelo racismo estrutural que orienta as relações políticas, econômicas, jurídicas e familiares1. Isto porque o racismo media a distribuição desigual de recursos e o pior acesso à educação, saúde, habitação, justiça e trabalho 2,3 entre negros e brancos. Além disso, a discriminação percebida nas relações cotidianas, o número assustador de mortes na juventude e o encarceramento em massa promovem experiências de exposição contínua a situações perigosas, violentas, humilhantes e constrangedoras que, desde a mais tenra infância, se associam ao adoecimento físico e psíquico entre negros.

Existem diferentes formas de sofrimento psíquico nas diversas populações negras e estas guardam similaridades e se distanciam em vários aspectos. Para entendermos como o racismo nos adoece devemos considerar as características da população a que nos referimos: é a população negra urbana? Caso sim, a que mora na periferia ou em bairros centrais? Está em situação de rua? Carcerária? Quilombola? Ribeirinha? De que gênero estamos falando? Qual a orientação sexual? Cada uma dessas variáveis e muitas outras se cruzam e definem se um indivíduo ou grupo terá maior ou menor proteção contra o racismo e, portanto, maior ou menor vulnerabilidade, mas toda pessoa negra será atingida.

A experiência de ser negra(o) numa sociedade racista compromete de forma significativa nossa saúde mental:

a) a discriminação e preconceito percebido isoladamente geram disparidades na saúde mental 4, ou seja, mesmo a pessoa negra com boas condições financeiras e alta escolaridade apresenta sofrimento psíquico por sofrer racismo. Existe uma associação positiva entre racismo percebido/discriminação e depressão, ansiedade, Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)5, 6;

b) os transtornos mentais são mais frequentes na população negra que na branca com destaque para psicose e transtorno mental comum (CMD) 7,8,9, 10. Geralmente, quando chegam aos serviços de saúde, recebem diagnósticos de maior gravidade e com comorbidades;

c) o racismo internalizado, que é o desenvolvimento de uma identidade étnico-racial desvalorizada ou negativa, tem associação com o desenvolvimento de depressão maior 11;

d) apresentamos maiores níveis de estresse crônico 2 que a população branca em todos os contextos pesquisados, sendo que mulheres negras referem mais estresse que homens negros 4. Importante destacar que o estresse crônico tem relação com adesão aos comportamentos de risco à saúde (sexual, exposição à violência, abuso de drogas), com dificuldade de autocuidado, adoecimento crônico (HAS, doenças autoimunes, cardiopatias), contribui para dificuldade de concentração que afeta memória e aprendizagem e crianças e jovens negros são diretamente afetados, relaciona-se também com ruptura de vínculos afetivos e lutos crônicos, absenteísmo e desemprego.

Tornar-se negra(o) como estratégia de promoção da saúde

Mesmo as pessoas negras alienadas de sua identidade racial, aquelas que negam o racismo, que se autodeclaram “marrom bombom”, “café com leite”, “moreno”, “cor de jambo”,

“chocolate” etc. para não serem reconhecidas como negras, as mesmas que acreditam na democracia racial e na meritocracia, sofrem por causa do racismo. Negar o racismo não faz com que ele desapareça ou não nos atinja, mesmo quando a pessoa negra tem alta escolaridade ou recursos financeiros. Ao contrário, negar sua identidade racial e buscar a qualquer custo se adaptar ao padrão da branquitude ou adotar “máscaras brancas” como discutido por Frantz Fanon, aumenta o sofrimento psíquico e custa um alto preço emocional em longo prazo.

Neste ponto, é importante ressaltar que branquitude não é a cor da pele, mas uma posição de poder. Herdamos dos tempos da colonização europeia a convenção de que características como humanidade, beleza, sucesso, bondade, força, inteligência, ética e moralidade, dentre outros, são atributos inerentes às pessoas brancas. Embora não haja qualquer evidência da relação entre raça/cor e estas características, na vida social cotidiana não brancos são instados a alcançar o padrão da branquitude e, simultaneamente, impedidos pelo racismo estrutural de atingir estes objetivos, o que significa experienciar um sofrimento psíquico intenso, difuso e não nomeado gerado por crenças persistentes de inadequação, desvalor, desamor e impotência.

Pessoas negras alienadas racialmente, aquelas que ainda não se “tornaram negras”, podem adotar comportamentos violentos e reproduzir racismo contra outras pessoas negras, a fim de serem reconhecidas ou beneficiadas por quem elas considerem representantes da branquitude. Podem, ainda, colocar sua integridade física e saúde em risco através de mudanças corporais por meio de múltiplas cirurgias estéticas, alisamento de cabelos e uso de cremes para clareamento da pele para alcançar padrões inatingíveis. Em situações extremas, sua identidade racial auto atribuída negativa pode produzir comportamentos de autoagressão, abuso de drogas, depressão e ideação suicida.

Neuza Santos Souza nos deixou uma importante contribuição para entendermos o processo de romper com a negação do racismo e desenvolver uma identidade racial saudável. Para esta psiquiatra negra, tornar-se negro é “viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é, sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades.” 12 (p. 18).

Torna-se negro, embora seja uma experiência individual, envolve toda a sociedade em pelo menos três processos complexos: a) socialização racial, processo educativo sobre o significado de ser negro (com ênfase em aspectos positivos) e como lidar com a discriminação racial 13; b) o desenvolvimento de identidade racial atribuída saudável, que consiste em incentivar e mediar a construção de atitudes e crenças raciais saudáveis para o indivíduo. Valores e afetos positivos em relação a si e a seus pares negros, incluindo atributos físicos, cognitivos, afetivos e sociais. Ambos os processos têm como resultado a construção de uma noção de si, do mundo e do futuro baseada no respeito, apreciação e valorização de suas características e herança racial e c) implementação de políticas amplas intersetoriais de enfrentamento do racismo estrutural e na saúde a implantação da política nacional de saúde integral da população negra (PNSIPN)14.

Considerando os estudos publicados e nossa experiência clínica, estes parecem ser processos fundamentais para a promoção da saúde mental da pessoa negra. Neste sentido, todo o cuidado em saúde mental deve considerar que ser negro numa sociedade racista gera um sofrimento de base, contínuo e intenso que deve ser cuidadosamente abordado através de

múltiplas estratégias ou corremos o risco de apenas atuar superficialmente sobre sintomas sem resolução efetiva dos conflitos que geram maior sofrimento psíquico.

Algumas palavras para os profissionais e docentes do campo da saúde mental

Poucas pesquisas brasileiras têm sido publicadas sobre a saúde geral e menos ainda sobre a saúde mental da população negra. Dentre as categorias profissionais do campo da saúde mental, a Psicologia se destaca como a única a ter uma resolução (nº 18 de 2002) e Referências técnicas de atuação (2017) que têm como objetivo orientar o profissional sobre como proceder em questões ligadas às relações étnico-raciais. No entanto, a maioria dos profissionais de saúde, inclusive os psicólogos, ignora os efeitos nefastos do racismo estrutural sobre a população negra.

No Brasil, os campos da saúde mental e da criminologia foram fortemente influenciados em sua constituição pelo racismo científico representado pelos estudos de autores como Nina Rodrigues, que defendiam a “natural tendência à degenerescência” da população negra, o que explicaria uma suposta inclinação a cometer crimes e à alienação (loucura). Foi com base nestas crenças pseudocientíficas que foram adotadas como política de Estado a imigração de brancos europeus como parte do projeto de branqueamento da sociedade e eliminação das raças “inferiores”. Dentre as estratégias de eliminação, utilizaram-se a limitação ou impedimento de acesso à justiça, educação, saúde, moradia e emprego. Além disso, a concentração de pessoas negras em hospícios e sanatórios historicamente serviu de contexto de segregação/encarceramento, estigmatização, violência e morte.

Embora essas práticas tenham sido hegemônicas entre o século XIX e início do século XX, as crenças racistas sobre características de personalidade ou perfil psicopatológico pretensamente inerentes a população negra persistem na população em geral e entre profissionais de saúde. Ainda que não seja comum a publicidade e defesa explícita destas crenças, a própria formação dos profissionais de saúde mental reproduz o racismo científico quando negligencia a análise da relação entre raça/cor da pele e adoecimento psíquico em seus estudos e cursos ou quando reduz sua análise sobre a saúde mental da população negra à discussão sobre abuso de álcool e outras drogas. O racismo institucional em saúde mental é evidente quando pardos têm a metade do número de atendimentos de brancos e pretos aparecem com taxas de mortalidade duas vezes maiores que brancos 15, pois não têm acesso a atendimento contínuo e de boa qualidade. É evidente, ainda, quando há expressiva subnotificação de raça/cor da pele dos usuários ou quando se utilizam critérios de diagnóstico e procedimentos terapêuticos que desconsideram os sintomas como um fenômeno histórico e político, sem assumir a necessidade de um esforço conjunto para mudar a cultura, as instituições estruturais e as narrativas que marginalizam esta população.

É, portanto, urgente a adequação dos nossos currículos, das instituições e das práticas clínicas às necessidades da população que hoje representa a maioria numérica da população brasileira e é a principal clientela do Sistema Único de Saúde.

Referências

1. Almeida, S. O que é racismo estrutural? Belo horizonte: Letramento, 2018

2. Faro, André; Pereira, Marcos Emanoel. Raça, racismo e saúde: a desigualdade social da distribuição do estresse. Estud. psicol. (Natal), Natal , v. 16, n. 3, p. 271-278, Dec. 2011

3. Schucman, Lia Vainer. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial sobre a branquitude paulistana. Psicologia & Sociedade, 2014, 26(1), 83-94. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822014000100010

4. Cuevas et al. Mediators of Discrimination and Self-rated Health among African Americans. Am J Health Behav. 2013;37(6):745-754

5. Pieterse Alex L, Todd Nathan R, Neville Helen A, Carter Robert T J. Perceived racism and mental health among Black American adults: a meta-analytic review. Couns Psychol. 2012 Jan;59(1):1-9.. Epub 2011 Nov 7. doi: 10.1037/a0026208;

6. Paradies Y, Ben J, Denson N, Elias A, Priest N, Pieterse A, et al. (2015) Racism as a Determinant of Health: A Systematic Review and Meta-Analysis. PLoS ONE 10(9): e0138511. doi:10.1371/journal.pone.0138511

7. Smolen, Jenny Rose; Araujo, Edna Maria de. Raça/cor da pele e transtornos mentais no Brasil: uma revisão sistemática. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 22, n. 12, p. 4021-4030, dez. 2017 .

8. Cooper et al, Perceptions of disadvantage, ethnicity and psychosis. The British Journal of Psychiatry (2008) 192, 185–190. doi: 10.1192/bjp.bp.107.042291

9. Nelson, . A . Of Eggshells and Thin-skulls: A consideration of racism-related mental illness impacting Black women. International Journal of Law and Psychiatry 29 (2006) 112–136;

10. Karlsen S, Nazroo J, Mckenzie K, Bhui K, Weich S. Racism, psychosis and common mental disorder among ethnic minority groups in England. Psychol Med. 2005 Dec;35(12):1795-803. Epub 2005 Sep 29. DOI: 10.1017/S0033291705005830

11. James, D. Internalized Racism and Past-Year Major Depressive Disorder Among African-Americans: the Role of Ethnic Identity and Self-Esteem. J. Racial and Ethnic Health Disparities DOI 10.1007/s40615-016-0269-1

12. Souza, Neusa Santos. Tornar-se negro. As vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

13 Jones, Shawn C.T. & Neblett, Enrique W.. Future Directions in Research on Racism-Related Stress and Racial-Ethnic Protective Factors for Black Youth, Journal of Clinical Child & Adolescent Psychology, 2016, 46:5, 754-766, DOI: 10.1080/15374416.2016.1146991.

14 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra : uma política para o SUS / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. – 2. ed. – Brasília : Editora do Ministério da Saúde, 2013.

15 Brasil. Ministério da Saúde. Painel de Indicadores do SUS nº 10. Temático saúde da população negra Vol. VII. Brasília: Ministério da Saúde. 82 p. MES, 2016.