Autoexílio acidental de fim de semana

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  • Kátia Borges

Publicado em 12 de setembro de 2021 às 05:40

- Atualizado há um ano

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Ainda é domingo e checo a lista de tarefas no bloco de notas. Há tantos deveres inadiáveis na segunda-feira, mas o fato de que o dia amanheça é apenas mais uma possibilidade. Aproveito o hiato breve entre os livros de estudo e a ficção que grita na estante e rabisco numa folha de papel uma ou duas frases, inspiração pontiaguda cutucando a coragem, palavras doloridas que causam uma fisgada nas mãos.

É preciso se reacostumar ao manuscrito, voltar a pensar com os dedos, percorrer com tranquilidade a página pautada, atravessar com a alma o deserto vertical. Nele, o mundo é táctil e nem em uma vírgula se pode voltar atrás sem borrar irremediavelmente a inteireza de cada sentença. Não sei, não sei quantos quereres adiáveis se enfileiram adiante, devires de outros deveres, ao longo da próxima semana.

Finco bandeiras de cores neutras no domingo, entre fronteiras de países imaginários, pátrias de um autoexílio acidental de fim de semana. Também de passagem, fixo metas de percurso, modos de andar em linha reta. Um amigo conta sobre a incômoda ternura que sentia pelas pessoas quase desconhecidas com quem costumava dividir a mesa na hora do almoço. Desde março do ano passado, não se veem.

Pouco revelavam sobre suas vidas, mas construíram um pequeno grupo nos intervalos do trabalho, tagarelando sobre assuntos aleatórios, falando mal do chefe, tamborilando com os talheres na fórmica. Conversavam frequentemente por mensagens de texto, compartilhando vídeos de rostos amassados, memes e figurinhas colecionáveis. No sábado, meu amigo diz, avisaram que perderam mais um deles.

E, agora, enquanto risco os deveres inadiáveis, em meu bloco de notas, um a um, acho que amanhecerei na segunda-feira pensando nas tragédias do mundo. E nos neohippies com iphone e página no Instagram, dando dicas de como pedir restos de comida em Londres. E no pai do fundador do Daft Punk, preso na Bahia por vender produtos falsificados. E em recuperar, aos poucos, a velha habilidade da letra cursiva.

Kátia Borges é escritora e jornalista