Bahia preta e orgulhosa

O escritor Nelson Maca reflete sobre as bases do Black Power e seus reflexos

  • D
  • Da Redação

Publicado em 27 de novembro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arquivo CORREIO

Perguntei ao meu mestre Carlos Moore qual a importância de James Brown para o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. Ele respondeu que Brown traduziu para a voz e corpo as bases fundamentais do Black Power. Teses e ações do movimento se ampliaram para o conhecimento de milhões de pessoas no mundo inteiro. Seu corpo e sua arte tornaram-se porta-vozes universais das lutas raciais na América, influenciando negros do mundo inteiro a ter orgulho de seu pertencimento à Grande Família e acordarem para a luta contra o preconceito, a discriminação e o racismo, aonde quer que manifestem. A Bahia também dançou sua dança, cantou seu canto e ecoou seu grito de libertação.

 Escrever sobre o Black Power num caderno especial para um evento de beleza negra em Salvador é celebrar a vida e dar seguimento à minha própria trajetória de difusão das ideias e fundamentos da negritude. Não por acaso, destaco isso no romance Ani: Todos os Felas do Mundo, narrando a trajetória de um artista engajado que, na infância no Engenho Velho de Brotas, no início dos anos 70, tem seu primeiro contato consciente com James Brown, justamente ao ouvir a música Black And Proud, do disco A Soulful Christmas. Na mesma cena, ele conhece o dançarino Negrizu, que lhe traduz e comenta o significado do título dessa canção- manifesto. É ele quem ensina o menino a dançar o soul e o batiza Ani Brown.  

O que Ani aprendeu com Negrizu e, depois, com seu tio Carlito Cubano ou simplesmente Carlos Moore? Primeiramente, observando os dois, apreciou a estética afro. Há uma cultura de autoestima física contextualizando e sustentando a negritude. O cabelo black power e o gesto do punho fechado socando o ar - eternizado pela fotografia icônica da então Black Panther Angela Davis - formam uma imagem síntese da auto- representação negra positiva e atuante. Fundidas às indumentárias peculiares da contracultura e dos estampados de tecidos africanos, principalmente nas batas, estas simbologias formam uma iconografia que equaliza o ético e o estético. Complementam o quadro de época os chapéus de feltro, tocas de lã, além das boinas militares e jaquetas de couro pretas dos Panteras Negras. Sim, somando-se aos Panteras, havia um grande exército negro nas ruas, muito bem identificados em sua visualidade. A estratégia estética e política percebida na construção visual da negritude tem continuidade histórica. Como exemplo potente e atual, podemos localizar a Marcha do Empoderamento Crespo e seu antecessor afro-cultural, o desfile de blocos afro. Devemos destacar aqui a potência da imagem negra do fenomenal Ilê Aiyê, chamado, com justiça, de o mais belo dos belos. 

Vale a pena voltar ao livro Ani, para lembrar que o artista nigeriano Fela Kuti, outra referência da narrativa, ele mesmo, na biografia autorizada Esta Vida Puta, de Carlos Moore, afirma ter se reencontrado como africano a partir da vivência nos EUA e de seu contato com o movimento pelos direitos civis, incluindo a cena artística negra contemporânea. A Autobiografia de Malcolm X, organizada por Alex Haley, e a arte de James Brown são fundamentais na formação política e musical do que se tornou o fenômeno Fela. 

Pois aqui, na Bahia, para o Ilê Aiyê, uma das fontes de sua inspiração foi a blackitude norte-americana. “Somos criolo doido, somos bem legal. Temos cabelo duro, somos black pau”, compôs Paulinho Camafeu para o bloco da Liberdade. 

A consciência negra-africana e sua respectiva afirmação histórica, física, visual e artística têm sido o foco das resenhas e debates mais populares sobre o Movimento Black Power. No entanto, ainda são pouco exploradas suas razões políticas, estruturais e econômicas. Os manifestos, ensaios e textos que lhe dão aporte teórico e estratégico requerem mais circulação no cotidiano da militância local.

Exploramos o Black Panthers Party como grupo de ação concreta no plano de assistência emergencial em defesa do povo negro e também na formação e atuação na autodefesa. Pouco se explora o grupo na sua proposta e experiência enquanto partido político. Difícil não lembrar as aulas da saudosa militante e ministra Luiza Bairros, estudiosa do assunto. Vivemos um bom momento para um mergulho com mais profundidade nessa demanda. Tem-se discutido a possibilidade de um partido negro no Brasil.

Voltando ao pai do soul, é bem famoso um vídeo em que ele está na escadaria de uma grande rádio. Durante sua infância pobre, vendia amendoim na mesma escadaria. Dito isso, JB fala que comprou a rádio e completa com a frase: “Isso é Black Power!”.  Não precisa muito esforço para lembrarmos aqui o nosso almejado black money. Todo herdeiro e herdeira do Movimento Black Power deve aprender bem essa lição. Da importância da população negra fortalecer o empreendedorismo comunitário ou, ao menos, exigir dos empresários  que têm na comunidade negra consumidores de seus produtos, que relevem esses clientes em toda sua cadeia empresarial: da pesquisa e fabricação do produto à sua publicidade e comercialização.

Sabemos que a expressão Black Power é uma forma genérica através da qual nos referimos a diferentes grupos e associações atuantes no período, mais especificamente nas décadas de 60 e 70. Trata-se de um vasto conjunto de concepções de mundo, crenças religiosas, escolhas artísticas, métodos e estratégias de luta e concepções políticas partidárias.

Um dos grandes debates se dá em torno da necessidade de integrar-se ou não ao modelo de sistema vigente nos EUA à época, diga-se, branco- europeu. Conviviam ativistas de formações diferenciadas e, até mesmo, conflitantes. Por isso o cuidado de não cairmos na armadilha de análises simplificadoras, que insistem em reduzir o debate a capitalismo versus socialismo ou negros cristãos versus islâmicos negros. 

O fato é que o Black Power se apoia em teses consistentes. Um dos textos mais divulgados, o Manifesto Negro de James Forman, foi publicado em 1969. Reflexões como a de Forman colocavam, há mais de 50 anos, de maneira crítica e objetiva, questões como as indenizações da população negra pela exploração da escravidão, base fundamental do movimento pelas reparações. Sob o aspecto econômico, algo bastante contundente em discurso e reflexões como a de Forman, é a necessidade de um banco comunitário negro. Propor o black money hoje parece até tímido diante da defesa de bancos negros há décadas. Porém, mais que comparar ou atribuir juízos de valor, o importante é entender que muito do que reivindicamos hoje, em verdade, é a ponta de um processo histórico. São lutas coletivas.

O Movimento Black Power faz parte de um processo histórico. Na Bahia, fundiu-se a elementos arraigados de diferentes culturas africanas. Entre elas, o candomblé, a capoeira, traços de línguas e memória de revoltas negras. A resistência do negro baiano faz-se na confluência de Bahia, África e Diáspora Negra. Mãe só temos uma. One People! One Love! 

Nelson Maca  é criador do coletivo Blackitude,  militante do movimento negro e  autor dos livros Gramática da Ira,  Guerra Preta ou Bahia Baixa Estação e Ani: Todos os Fela do Mundo