Bahia tem quase 650 órfãos de vítimas da covid com até 6 anos

Estado ocupa o 5º lugar do ranking nacional de número absolutos

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 19 de outubro de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arquivo Pessoal

Ainda é comum escutar que a covid-19 não atinge tanto assim as crianças. Mas, por mais que a maioria esmagadora das quase 27 mil vítimas da doença na Bahia não seja dos pequenos, cada uma dessas mortes representa um impacto em uma família, e, muitas vezes, uma criança que fica sem pai e/ou mãe. Entre 16 de março de 2020 e 24 de setembro de 2021, ao menos 646 crianças de até seis anos de idade na Bahia ficaram órfãos de um dos pais vítimas da covid-19. O estado ocupa o quinto lugar no ranking nacional de registros absolutos e a 18ª posição se considerados os números a cada 100 mil habitantes (confira a lista completa no final da reportagem).  

Das 646 crianças, 21,3% (138) não tinham completado nem ao menos 1 ano. Já 15,6% (101) tinham 1 ano de idade, 16,5% (107) 2 anos de idade, 13,9% (90) 3 anos, 10,2% (66) 4 anos, 11,6% (75) tinham 5 anos e 9,9% (64), 6 anos. Os dados obtidos pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), foram levantados com base no cruzamento entre os CPFs dos pais nos registros de nascimentos e de óbitos feitos nos 685 Cartórios de Registro Civil do estado desde 2015, quando as unidades passaram a emitir o documento diretamente nas certidões de nascimento das crianças recém-nascidas em toda região baiana. 

O levantamento aponta ainda que cinco pais faleceram antes mesmo do nascimento de seus filhos, enquanto três crianças, de até seis anos, perderam pai e mãe vítimas da covid-19. Esse é o caso da pequena Agnes, agora com 11 meses. A bisavó, a avó e a mãe dela morreram no intervalo de uma semana. O pai, que ficou internado por cerca de 40 dias, morreu no dia 18 de abril deste ano. 

Agnes então ficou sob os cuidados do casal Maiquele e Kelly, que é irmã do pai biológico de Agnes. A bebê chegou com covid-19 e as duas também foram infectadas, mas todas se recuperaram bem. “Desde a hora em que recebemos a notícia do falecimento do pai, em nenhum momento a gente pensou em ver como ficaria a situação, já aceitamos a missão que Deus estava dando para a gente. Já tínhamos o plano de adotar daqui a uns cinco anos, mas não foi no nosso tempo, foi no tempo de Deus. Agnes é o que vem trazendo a nossa alegria diária diante de toda essa tragédia”, conta Maiquele de Jesus, 26 anos. 

Mesmo tão pequena, segundo Maiquele, Agnes sente a falta dos pais. “Nas datas de falecimento a gente vê que ela chora, fica de dengo, eu acredito que ela sente. No dia em que a mãe dela faleceu, ela chorou o dia inteiro. Quando passa, ela volta a ser sorridente. Porque Agnes é muito alegre, não é de ficar chorando e abusando, é uma menina de luz, que traz paz diante das turbulências da vida”, acrescenta. 

Com o consentimento do avô materno e da avó paterna, o casal entrou com um processo pela guarda de Agnes, que tinha 4 meses na época. A guarda provisória já foi concedida pelo período de um ano e já foi aberto o pedido da guarda definitiva. “Já estamos desde agora deixando a história dela bem aberta em casa. Revelamos fotos que ficam espalhadas aqui para ela ir crescendo e vendo as imagens dos pais. Quando ela tiver o entendimento, vamos sentar e conversar. Temos uma psicóloga que acompanha a família, isso tudo para que não seja um choque para ela”, afirma Maiquele.  Kelly e Maiquele têm a guarda provisória de Agnes e tentam a definitiva (Foto: Arquivo Pessoal) Já Luan*, 5 anos, perdeu a mãe, Luana*, que faleceu de covid-19 em maio, aos 40 anos. Ele ficou sob os cuidados do pai, mas quase o perdeu também. A mãe e o pai do menino foram internados no mesmo dia. Ela faleceu uma semana depois, ele teve alta quase três meses depois.

“Os médicos pediam muito que a família orasse por ele, a gente realmente teve medo de que Luan* ficasse sem a mãe e sem o pai”, diz uma amiga de Luana*.

“Foi muito complicado porque o processo de recuperação do pai é lento, ele ainda não está 100%. Felizmente, ele tem uma rede de apoio muito forte formada por familiares e amigos, mas ela era o porto seguro da família”, diz a amiga. 

Ela acrescenta outro fator que aumenta os desafios da família: Luan* é autista. “Isso faz com que ele demande mais cuidados. Vem sendo um desafio e ele é acompanhado por um psicólogo”, explica. 

A mãe de Luan* e a amiga se conheceram na faculdade de pedagogia e o plano das duas era comemorar os 13 anos de formadas em julho de 2022, vislumbrando o fim da pandemia.“A gente precisa parar de subestimar a pandemia e entender que ela ainda não acabou. O vírus continua matando, mesmo que de forma desacelerada. Mas a mensagem que eu deixo é para a gente acreditar na ciência, porque a vacina vem salvando muitas vidas. Infelizmente, ela chegou tarde no nosso país, não chegou a tempo de salvar minha amiga, que iria se vacinar na semana em que ela morreu”, finaliza a pedagoga. Órfãos da covid-19 no Brasil

No Brasil, de 16 de março de 2020 a 24 de setembro de 2021, ao menos 12.211 crianças de até 6 anos de idade ficaram órfãs de um dos pais vítimas da covid-19. Segundo os dados levantados pela Arpen-Brasil, 25,6% dessas crianças que perderam um dos pais não tinham completado 1 ano. Já 18,2% tinham 1 ano de idade, 18,2% 2 anos de idade, 14,5% 3 anos, 11,4% 4 anos, 7,8% tinham 5 anos e 2,5%, 6 anos. Os números mostram ainda que 223 pais faleceram antes do nascimento dos filhos, enquanto 64 crianças até a idade de 6 anos perderam pai e mãe. 

O presidente da Arpen-Ba, Daniel Sampaio, explica como os dados foram obtidos. “Nós temos um banco de dados tanto para óbito quanto para nascimento. A partir do número elevado de vítimas da covid-19 aqui no Brasil, decidimos fazer uma análise qualitativa desse banco de dados, cruzando algumas informações, para chamar a atenção da população e mostrar que o impacto vai além do número de mortos em si”.

Desde 2015, uma parceria da ARPEN Brasil com a Receita Federal possibilitou que o número de CPF das crianças fosse gerado por ocasião do registro de nascimento. Os cartórios de registro civil foram habilitados a emitir o CPF gratuitamente e, na emissão da certidão de nascimento, o CPF também é gerado, sendo interligado com o CPF dos genitores. “O que fizemos foi cruzar os CPFs dos genitores das crianças com os CPFs de pessoas que tiveram o óbito por covid-19 registrado nesse período de pandemia”, acrescenta Sampaio. 

Desde o ano passado, vem se discutindo a possibilidade do Governo Federal prestar um suporte para as crianças que perderam seus pais para a covid-19. Ao final do seus trabalhos, a CPI da covid deve apresentar uma série de propostas a respeito da pandemia e, entre elas, uma pensão de R$ 1 mil para órfãos de vítimas do coronavírus.

A pensão para órfãos seria paga a qualquer a família que tenha ao menos uma criança ou um adolescente cujo genitor tenha morrido em decorrência da infecção por coronavírus e não tenha contribuído para a Previdência Social. O beneficiário receberia R$ 1 mil por mês até completar 18 anos.

Impacto sobre as crianças

A psicóloga e psicanalista Niliane Brito, da clínica Spazio Psi, destaca que cada criança vai sentir o impacto do luto dos pais de uma maneira diferente, então é preciso individualizar o cuidado e prestar atenção aos sinais que ela dá. “O luto para uma criança A não vai ser o mesmo para uma criança B, mesmo que elas tenham a mesma idade e tenham ambas perdido os pais para a covid. Mas é importante que haja uma despedida. Na covid esse ritual fica comprometido por conta do risco de contaminação, mas é fundamental que seja feito, mesmo que de outras formas”, afirma.

Segundo Niliane, a partir da perda, é comum que a criança perca a referência, ficando sem rumo. “Quando ela perde pai e mãe, por mais que vá para os cuidados de outra pessoa da família, vai ser uma nova configuração, com uma rotina modificada radicalmente”, diz. A partir disso, a criança pode desenvolver comportamentos não saudáveis que servem como sinal de alerta para os responsáveis buscarem o acompanhamento de um psicólogo. “O principal deles é a agressividade, com crianças que mordem ou beliscam. Muitas delas, independente da idade, às vezes não sabem externalizar corretamente suas emoções e o corpo acaba falando por elas”, coloca.

A psicóloga alerta ainda que, se o processo de luto não for corretamente vivido, o indivíduo pode desenvolver ansiedade, gatilhos, dificuldade de confiar nas pessoas e outros transtornos emocionais que terão impactos até a vida adulta. “Às vezes uma criança que perdeu o pai ou a mãe para a covid pode passar a se desesperar a qualquer sinal de doença, assim como pode também acreditar que foi abandonada ou desenvolver uma ansiedade muito grande em relação ao seu futuro”, finaliza. 

A reportagem tentou contato com o Conselho Regional de Serviço Social da Bahia (Cress-Ba) para entender o que acontece com uma criança que perde pai e mãe, mas não teve sucesso. A Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-Ba) também foi procurada, mas não respondeu até o fechamento da reportagem. 

Crianças até 6 anos que perderam os pais por covid-19 no Brasil:Rondônia - 244 órfãos no total; 13,44 órfãos a cada 100 mil habitantes Goiás - 809 órfãos no total; 11,22  órfãos a cada 100 mil habitantes Mato Grosso - 378 órfãos no total; 10,59 órfãos a cada 100 mil habitantes Acre - 99 órfãos no total; 10,91 órfãos a cada 100 mil habitantes Amapá - 73 órfãos no total; 8,31 órfãos a cada 100 mil habitantes São Paulo - 3.836 órfãos no total; 8,22 órfãos a cada 100 mil habitantes Sergipe - 168 órfãos no total; 7,18 órfãos a cada 100 mil habitantes Santa Catarina - 506 órfãos no total; 6,89 órfãos a cada 100 mil habitantes Paraíba - 267 órfãos no total; 6,57 órfãos a cada 100 mil habitantes Paraná - 753 órfãos no total; 6,49 órfãos a cada 100 mil habitantes Distrito Federal - 199 órfãos no total;  6,43 órfãos a cada 100 mil habitantes Amazonas - 271 órfãos no total; 6,34 órfãos a cada 100 mil habitantes Espírito Santo - 258 órfãos no total; 6,27 órfãos a cada 100 mil habitantes Tocantins - 88 órfãos no total; 5,47 órfãos a cada 100 mil habitantes Roraima - 91 órfãos no total; 5,01 órfãos a cada 100 mil habitantes Rio Grande do Sul - 567 órfãos no total; 4,94 órfãos a cada 100 mil habitantes Rio de Janeiro - 774 órfãos no total; 4,43 órfãos a cada 100 mil habitantes Bahia - 646 órfãos no total; 4,31 órfãos a cada 100 mil habitantes Mato Grosso do Sul - 121 órfãos no total; 4,26 órfãos a cada 100 mil habitantes Ceará - 385 órfãos no total; 4,16 órfãos a cada 100 mil habitantes Pernambuco - 366 órfãos no total; 3,78 órfãos a cada 100 mil habitantes Pará - 310 órfãos no total; 3,53 órfãos a cada 100 mil habitantes Rio Grande do Norte - 112 órfãos no total; 3,14 órfãos a cada 100 mil habitantes Alagoas - 97 órfãos no total; 2,88 órfãos a cada 100 mil habitantes Minas Gerais - 579 órfãos no total; 2,70 órfãos a cada 100 mil habitantes Piauí - 72 órfãos no total; 2,18 órfãos a cada 100 mil habitantes Maranhão - 142 órfãos no total; 1,98 órfãos a cada 100 mil habitantes Os Números são da ARPEN e a estimativa populacional do IBGE, divulgada em agosto deste ano

*Com a orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro

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