Banalidade do mal é coisa nossa

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  • Paulo Sales

Publicado em 25 de janeiro de 2021 às 06:28

- Atualizado há um ano

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É de Albert Camus a frase: “A política e os destinos da humanidade são forjados por homens sem ideais nem grandeza”. Passados 60 anos da morte do autor de O Estrangeiro, essa definição permanece vívida, como um desarranjo nos intestinos da civilização. Prosseguimos produzindo em larga escala e alçando ao poder tipos dos mais repulsivos e abjetos. Seja nos Estados Unidos, na Hungria, na Polônia, nas Filipinas, na Coreia do Norte ou no Brasil. Democracias sólidas, como a norte-americana, conseguem extirpar essas anomalias, mesmo com alguma dificuldade.

Não é o nosso caso, e temo pelo nosso futuro. Vivemos hoje o momento mais grave da nossa titubeante trajetória política recente. Só no auge dos anos de chumbo, quando a repressão atingia níveis escabrosos de desumanidade, houve algo tão sombrio. Creio que no futuro precisaremos de um processo íntegro e impiedoso de julgamento das atrocidades cometidas pelo atual governo. Um impeachment – até por improvável – seria insuficiente. Algo, quem sabe, como um tribunal de Nuremberg, conforme sugeriu a colunista Cristina Serra no jornal Folha de S.Paulo, semanas atrás.

Cristina afirmou: “Bolsonaro e sua gangue precisam ser levados a um tribunal de Nuremberg da pandemia. Só uma investigação com a mesma amplitude será capaz de explicar o mal em grande escala praticado contra a população brasileira. Isso terá que ser exposto, em caráter pedagógico, para ser conhecido pelas próximas gerações e evitar que se repita. Como Nuremberg fez com os crimes de guerra dos nazistas.”

Ao citar o genocídio cometido sob ordens expressas de Adolf Hitler, Cristina Serra me fez lembrar de outro julgamento, este em Jerusalém, que se tornou célebre pelo termo “banalidade do mal”, cunhado pela filósofa Hannah Arendt ao se referir a Adolf Eichmann, responsável pela logística das deportações em massa dos judeus para os campos de concentração. De acordo com Hannah, os atos de Eichmann não eram desculpáveis, muito menos ele era inocente. Mas não foram atos executados por um ser dotado de imensa crueldade, e sim por um funcionário burocrata dentro de um sistema baseado em atos de extermínio.

Quem seria, dentro desse raciocínio, o nosso Eichmann? Algum subalterno também “especializado” em logística? É provável que sim. Seguir ordens estritamente, não importando que provoquem a morte por asfixia de dezenas de pessoas, é passível de julgamento e condenação. Nós, brasileiros, temos o nosso Derek Chauvin, aquele policial branco que matou George Floyd asfixiado em Minneapolis, nos Estados Unidos. Que seja punido.

Mas meu receio – e tenho motivos de sobra para tê-lo – é que tudo isso acabe escorrendo pelo ralo da história. Que todas essas tragédias que presenciamos diariamente há quase um ano acabem virando uma nota de pé de página, como a revolta da vacina e a gripe espanhola nas primeiras décadas do século 20. E pior: que os vencedores de ontem esmaguem amanhã algo que temos de muito precioso: nossa liberdade e nossa indignação.