Brincadeira de gente grande: venda de brinquedos pela internet cresce 400%

Depois da migração das lojas físicas para o e-commerce, isolamento social favorece expansão do setor durante a pandemia

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  • Priscila Natividade

Publicado em 2 de agosto de 2020 às 09:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Acervo pessoal

Na hora de embaralhar as cartas, a sorte afastou o revés do que seria um cenário de perda. A brincadeira poderia ser só uma partida de um dos jogos de tabuleiro mais tradicionais do mercado de brinquedos, mas, na verdade, reflete o desempenho do setor na pandemia, que usou a estratégia certa para ganhar mais.

O segmento  pode não ter conquistado a maior fortuna possível, mas, não levou seus jogadores à falência. Mesmo com as lojas físicas fechadas em março e reabertas há  pouco mais de uma semana, a cadeia produtiva dos brinquedos surpreendeu nos últimos meses.

 Em indústrias como a Estrela, por exemplo, o crescimento das vendas pelo e-commerce passou dos 400%, cenário que se repete com relação aos dados da Bahia. Entre os itens fabricados pela marca, adivinha qual ocupa o primeiro lugar? Ele mesmo, o Super Banco Imobiliário, seguido pelo  Jogo da Vida, Eu Sou?, Jogo da Mesada.

 “Tivemos que correr para aumentar a produção, sobretudo, da linha de jogos. Vendemos quase duas vezes o que foi comercializado no mesmo período do ano passado”, afirma o diretor de marketing da Estrela, Aires Fernandes.

Os jogos de tabuleiro foram os que puxaram esse bom desempenho, como acrescenta o diretor. Na lista entra também Detetive, Cara a Cara, Combate e Cai não Cai. “São jogos tradicionais, grifes que atravessam gerações. Por já terem o conhecimento dos adultos, eles estavam guardados na memória afetiva”, reforça.

A brincadeira ficou séria mesmo quando a assistente social Sandra Matos fez as contas: em quatro meses gastou cerca de R$ 1 mil só com a compra de quebra-cabeças. Não era aniversário, Natal e as três filhas de Sandra são adultas, porém, o jogo em família passou a fazer parte da rotina, devido ao isolamento social.

“Comprei na faixa de uns 10 quebra-cabeças de várias peças e eles não são nada baratos. Eles ajudam a tirar o foco da pandemia”, conta.

A regra do jogo A indústria baiana de brinquedos também reconhece o destaque para a venda de jogos e quebra-cabeças. Segundo o diretor de marketing da fábrica da Novabrink/ Rosita, instalada em Lauro de Freitas, Germano Brandino, os produtos com youtubers, também tiveram uma boa resposta. A fábrica, no entanto, não aderiu a uma plataforma online.

“O fechamento das lojas físicas derrubaram em torno 35% nossas vendas em relação ao mesmo período do ano passado. Porém, os jogos, quebra-cabeças e produtos relativos a youtubers, aumentaram a procura na crise”.

Localizada no município de Camamu, a Latoy Brinquedos também não operou vendas via e-commerce. Após registrar queda de 75% e 50% em abril e maio, respectivamente, a empresa espera crescer 15% nos meses de junho e julho com sua produção  de brinquedos e mordedores de latex para bebês e pets.

“Empresas que já tinha vendas online através de e-commerce ou marketplace se saíram um pouco melhor. O que manteve as nossas vendas foram supermercados, farmácias e petshops que não fecharam”, pontua o CEO da Latoy, Marcelo Brandão.

 A psicóloga Fernanda Gordilho teve covid-19. Ela é mãe de Gustavo, de 12 anos, Rafael Gordilho, de 9 anos e Gabriela, que tem 6 anos. Os quadros magnéticos de cores e formas, bingo dos bichinhos e jogos de tabuleiro como dama, ludo, gamão ajudaram a quebrar a monotonia. “Estávamos completamente isolados. Os jogos que compramos ajudaram a quebrar a rotina”, diz Fernanda. 

Quem investiu no online avançou casas a mais no jogo. O site inaugurado no mês de junho pela Tato Brinquedos Educativos alcançou uma expansão de 250% nas vendas, comparado com o mesmo período dos dois últimos anos. A fábrica funciona em Salinas da Margarida e aumentou a produção em mais que o dobro. 

“O confinamento e excesso de eletrônicos justificam a expansão. Isso aliado à necessidade de ficar em casa gera esta demanda por entretenimento educativo”, pontua o sócio da Tato, Everton Marco.

É brincadeira?  A Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq) ainda não tem dados consolidados sobre o crescimento do segmento durante a pandemia. O levantamento mais recente mostra que o ano de 2019 o setor  fechou com um  faturamento de  R$ 7,290 bilhões, 6% acima do resultado de 2018.

Em um momento onde a economia brasileira sofre desaceleração e a renda do consumidor caiu com o agravamento da crise, o diretor de Indicadores e Estatística da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais (SEI) e presidente em Exercício do Conselho Regional de Economia (Corecon-BA), Gustavo Casseb Pessoti, enxerga a capacidade de expansão do setor com surpresa.

“A própria Abrinq, estimava uma perda, e, pelo contrário, o crescimento está acontecendo. Os fatores estão relacionados ao e-commerce. Na pandemia, o processo virtual passou a ser decisivo para esta atividade”, avalia.

Segundo a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abecomm), brinquedos e jogos, logo no início do isolamento,  tiveram um crescimento de 434% na procura no período de 15 a 28 de março, comparada a quinzena anterior. A média de gasto por compra (ticket médio) ficou em R$ 179,26.

Outra prova deste desempenho positivo está em consumidores como a artesã Gisele Santos, que passou a comprar bem mais pela internet. Mãe de Maria Luiza de 6 anos e Valetim, de 1 ano, ela adquiriu desde o boneco do Homem de Ferro à boneca da Baby Alive. “Comprei bem mais brinquedos para deixar efeito da quarentena mais leve, na medida do possível”, diz.

E nesta brincadeira, vai ser necessário pesquisar bastante para encontrar um valor em conta. Isto porque, o comportamento dos preços se justifica no custo dos insumos para a produção nacional, que ainda são importados e sofrem o efeito da alta do dólar, como acrescenta Gustavo Casseb Pessoti. “Muitos brinquedos têm componentes importados. Além disso, as empresas não diminuem suas margens porque as lojas físicas estão fechadas, mantendo os preços dos brinquedos elevados”.

A fisioterapeuta Janina Andrade percebeu o impacto no bolso. O filho Zeca tem 6 anos e ela buscou brinquedos com uma proposta mais educativa. “Os preços subiram e também senti atraso nas entregas”.

Melhor jogada  Sem nem precisar de uma rodada extra, varejistas como na ToyMania, tiveram crescimento da loja virtual durante a pandemia de 357%. Na Bahia, o comportamento de vendas alcançou  227%. Para o gerente de e-commerce da empresa, Eduardo Carvalho, o brinquedo virou item de primeira necessidade. “Este crescimento revela a mudança de comportamento do consumidor durante a pandemia, a categoria de brinquedos tornou-se prioritária e essencial”.

Já na Ri Happy/ PB Kids, a venda de jogos e quebra-cabeças no site cresceram três vezes mais que o normal, como explica a diretora de marketing do Grupo Ri Happy, Emília Velloso. “Com  mais de 280 lojas fechadas para atendimento presencial, introduzimos o modelo ‘ship from store’ com lojas funcionando como centros de distribuição em apoio ao e-commerce”, diz ela. 

Em empresas como a Bmart, que não contavam com uma plataforma digital para vendas, a adequação foi feita em apenas dois dias. “Não queríamos perder as vendas. Anunciarmos o Instagram e o WhatsApp empresarial”, afirma Mirian Siqueira Trabasso, diretora regional da Bmart.

A Le Biscuit foi outra varejista que investiu pesado no e-commerce, lançado em maio. Foram R$ 25 milhões para viabilizar a plataforma, como destaca o gerente executivo de Planejamento e Abastecimento da Le Biscuit, Igor Albuquerque. “A categoria de brinquedos vem crescendo desde o lançamento do site e já se alinha à participação das lojas físicas”.

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Lojas menores também estão vendendo mais, como no caso da Brincô Delivery de Brinquedos, em Salvador. A proprietária da loja, Márcia Guerra, estima que o aumento das vendas alcançou 70% no período do isolamento social. “Hoje estamos atendendo, principalmente, avós, tios, dindos que querem que o presente chegue em forma de afeto e amor, já que no momento não permite que eles estejam pessoalmente”.

A engenheira Rita Bittencourt, é mãe de Lina e Lara, de 9 e 7 anos  e colocou uma regra em casa: não vale pedir brinquedo caro. “Não compro só por causa da propaganda”. Ela chegou a  comprar brinquedos novos para tentar distrair as meninas, porém o que fez sucesso foi transformar  uma caixa de papelão em um bebê conforto para a boneca. “Até a nossa gata aprovou e acabou adotando para ela como a nova casinha. Minha filha ficou super feliz”, completa.

OS 10 MAIS VENDIDOS

1. Hot Wheels Lava Rápido – Mattel: R$ 229

2. Massinha de Modelar Ladybug Padaria - Fun Divirta-se: R$ R$ 39,90

3. Barbie Kit de Pintura - Fun Divirta-se: R$ 89,90

4. Boneca Baby Alive Misturinha Sabor Tropical – Hasbro:  R$ 249,98

5. Quebra-Cabeça 3D Módulo Lunar Apollo - Brinquedos Chocolate: R$ 99,90

6. Mini Boneca Surpresa - LOL - Lil Sisters Série 4 – Candide: R$ 64,90

7. Fisher-Price Pirâmide de Argolas – Mattel: R$ 159,99

8. Jogo Banco Imobiliário – Estrela: R$ 129,90

9. Patrulha Canina Mesa com Cadeira - Fun Divirta-se: R$ 229 

10. Barbie Viajeira – Mattel: R$ 149,90

Fonte: Toymania (www.toymania.com.br)/ preços pesquisados até 31/07

BRASIL GANHA VANTAGEM NA DISPUTA COM A CHINA

A pandemia pode virar o jogo a favor do Brasil, sobretudo, com o aumento da participação da indústria nacional no mercado de brinquedos. Na disputa acirrada com a China, o país tem a oportunidade de sair em vantagem na preparação da produção mirando o Dia das Crianças, em outubro. Após o surto do coronavírus paralisar as fábricas chinesas, que só retornaram às atividades de maneira gradual nos últimos meses, o cenário acabou abrindo espaço para os fabricantes  instalados no Brasil. Isso sem contar ainda com a força extra que vem da alta do dólar (atualmente em R$ 5,22), que encarece os produtos importados.

A Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq) já tinha afirmado, em abril deste ano, que a indústria de brinquedos estava a todo vapor produzindo estoque pensando na data comemorativa mais aguardada pelas crianças, com o objetivo de se antecipar a concorrência chinesa, até que ela conseguisse alcançar plenamente sua capacidade produtiva.

Segundo a entidade, cerca de 52% da produção de brinquedos é feita no Brasil e 48% do que é vendido vem do exterior, sendo 41% da China. Em 1994, o mercado nacional chegou a responder por 98% das vendas até o ‘Made in China’ se tornar imbatível no fator preço. 

De acordo com a estatística anual da Abrinq, a sazonalidade das vendas ao longo de 2019 permaneceu semelhante aos anos anteriores, concentradas em mais de 57% nos meses de julho, agosto, setembro, outubro e novembro, para abastecer as lojas no dia 12 de outubro e no Natal.

Mesmo que o cenário de crise provocasse algum temor capaz de interferir no crescimento do setor, que fechou o ano  com um aumento de 6%, ainda assim, a vantagem é brasileira, como explica o diretor de Indicadores e Estatística da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais (SEI) e presidente em Exercício do Conselho Regional de Economia (Corecon-BA), Gustavo Casseb Pessoti.

“Há estudos no mercado que apontam que essa relação pode chegar a 70% (Brasil)/30% (China). Há uma possibilidade muito concreta da indústria nacional reassumir esta participação. Não só por conta do momento de colapso que a China enfrenta, mas também, porque vai demorar muito até que a taxa de câmbio se restabeleça em patamares próximos de R$ 3. Além de estimular a indústria brasileira, existe uma perda de participação dos chineses devido à queda das importações”, analisa.

PAIS OPTAM POR CONSTRUIR OS PRÓPRIOS BRINQUEDOS

O administrador de imóveis Hebert Gotelip só costuma gastar com brinquedos em datas comemorativas como o aniversário, Dia das Crianças e o Natal. As compras não passam de R$ 300. Às vezes, quando ainda dava para fazer um passeio, o filho, Levi Gotelip, de 7 anos, fazia com que o pai fugisse à regra e comprasse algo por fora. Porém, Hebert ainda não gastou R$ 1 com brinquedos nesta pandemia. Isto porque ele decidiu construir um fliperama com Levi, na função de assistente. Hebert e o filho Levi estão construindo um fliperama durante a quarentena (Foto: Acervo Pessoal) “Meu filho mora com a mãe, mas está comigo na quarentena. Fiz curso de programação e estudei mecatrônica para construirmos o fliperama. Eu já tinha alguns materiais em casa, então, não gastei com quase nada", conta. 

Placas de computador usadas, madeira, que também estava guardada, pouco a pouco foi dando forma ao brinquedo que deve ficar pronto ainda esta semana, após 20 dias de trabalho. “A experiência tem trazido um alto convívio  entre nós. Sem esse entrosamento, o brinquedo é apenas um passatempo. O brinquedo nos une, nos aproxima e esse convívio é o que faz a diferença”.

A psicóloga, psicoterapeuta infanto-juvenil e sócia-fundadora do Instituto Semente, Ianne Santos, concorda: “Proporcionar objetos que a criança se interesse, que tenha um sentido nesse momento para ela, pode gerar sim, acolhimento e muito prazer”, diz.

A especialista destaca ainda que não faz sentido propor um momento lúdico, apresentar brinquedos, ideias, e quando a criança se coloca no cenário, o adulto está fazendo outras coisas, como, por exemplo, mexendo no celular. “A criança percebe quando estamos entregues na brincadeira. Isso alimenta o interesse na troca. Se o brinquedo desperta curiosidade, oferta experiências de aprendizagem  e está de acordo com a faixa etária, certamente ele pode ser um brinquedo interessante para ela”.