Com aumento de trabalho na pandemia, coveiros baianos se apegam à família e à religião

Especialistas afirmam que profissionais devem ter cuidado permanente com a saúde mental

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  • Thais Borges

Publicado em 15 de maio de 2021 às 07:00

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Funcionários do Campo Santo, Paulo Lourenço e Rafael Rios têm enfrentado dias de maior trabalho e dificuldades (Foto: Paula Fróes/CORREIO)

Quando os equipamentos chegaram, o sentimento geral era de medo. Era simbólico: coveiros de todos os cemitérios do estado tiveram que se adaptar aos macacões brancos e às máscaras do tipo PFF2/N95 ao mesmo tempo em que precisavam conviver com o risco de uma doença que ainda pouco se sabia. 

Hoje, pouco mais de um ano depois das primeiras mortes em decorrência da covid-19 na Bahia - e somando mais de 19 mil óbitos -, os profissionais que cuidam dos mortos enfrentam os próprios dramas e o cansaço de quem não parou de trabalhar para cuidar de si. Para alguns desses profissionais, o luto da pandemia não ficou só na realidade das famílias que atendem. 

Mesmo agora, que cidades como Salvador já começam a relaxar medidas de restrição, o trabalho continua pesado - com tendência de aumento nas próximas semanas. De acordo com projeções do portal Geocovid, projeto liderado pela Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), se a taxa de contágio continuar exatamente como hoje, em um mês, serão cerca de 100 mortes por dia. 

Leia mais: Conheça o coveiro que também acolhe: além de enterrar os mortos, Rafael está se formando em Psicologia

A morte não espera nem mesmo o fim do turno de trabalho. Quando recebeu a ligação contando que o cunhado tinha morrido de covid-19, O pedreiro Paulo Cezar Lourenço, 46 anos,  estava de plantão. Naquela hora, no Campo Santo, onde trabalha, só restavam ele e outro colega.  No cemitério, os corpos são enterrados por profissionais chamados de pedreiros e de auxiliares de serviços diversos.  Paulo estava de plantão quando o cunhado morreu de covid-19 (Foto: Paula Fróes/CORREIO) "Perdi meu cunhado e eu mesmo tive que enterrar. Ele ficou mais ou menos um mês internado (no hospital de campanha) na Arena Fonte Nova’", lembra, referindo-se ao episódio há pouco mais de seis meses, ainda antes da segunda onda da pandemia.  Paulo é um dos responsáveis pelas sepulturas no sistema de gavetas. Naquele dia, não segurou o choro. "Foi um dia muito difícil. Porque a gente tem a consciência de que estamos aqui e, amanhã, podemos não estar. Estamos passando por tempos difíceis", diz ele, prestes a completar seis anos no cemitério. 

Exaustão A cada dia, a chegada no trabalho traz uma nova angústia. Paulo sabe o que tem que fazer. Ainda assim, não é incomum ser surpreendido por um dia ainda mais trabalhoso. "A gente chega com uma expectativa de que vai ser um dia tranquilo, mas não é. Ainda mais nessa época", avalia.  Como pedreiro, Paulo é um dos responsáveis pelas sepulturas no cemitério (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Quando a covid-19 invadiu a vida da família, Paulo viu o quanto tudo era imprevisível. O cunhado estava na faixa dos 45 anos e era pai de três filhos. Trabalhava numa loja de instrumentos musicais e fazia parte de um grupo de samba. Era jovem e estava bem até não estar mais. 

Mas nem foi a única perda que ele teve. Paulo também viu um vizinho, amigo próximo, morrer de covid-19."Pode ser que a gente pegue a covid aqui, mas pode ser que a gente pegue dentro do ônibus lotado. A gente não sabe. Mas já tomamos a vacina", conta. Os coveiros de Salvador já tomaram ao menos a primeira dose do imunizante contra a covid-19, de acordo com a Secretaria Municipal da Saúde (SMS). Segundo o órgão, os trabalhadores são considerados profissionais de saúde e, por isso, começaram a ser vacinados ainda na fase 1 dos grupos prioritários da campanha de imunização. 

No Campo Santo, são quatro pedreiros. Por isso, antes da covid-19, Paulo fazia, em média, cinco enterros por dia. Hoje, chega a fazer entre oito e dez, mas já houve dia em que fechasse 12 sepulturas. 

Em casa, vê a preocupação da esposa. Ela sabe que Paulo está exausto - e que continua com medo. "Mas é um pânico global. Todo mundo está com medo, não sou só eu. É uma doença que pegou tanto rico quanto pobre. Não tem esse negócio de ir para hospital tal em São Paulo, com os melhores médicos", diz, citando famosos que morreram recentemente pela doença, como os cantores Aguinaldo Timóteo e Irmão Lázaro. 

Em alguns aspectos, ele acredita que a primeira fase da pandemia foi mais difícil. Tinha que usar o macacão branco praticamente durante todo o dia, mesmo com as altas temperaturas de Salvador. A cada sepultamento, havia o medo do processo em si. Havia muita tensão até para tirar as luvas que usavam - a 'desparamentação' é um processo que, em que, de fato, muitos profissionais que trabalham com a covid-19 acabam sendo infectados. 

Agora, o pior é o cansaço. A rotina de cuidados, tanto em casa quanto no cemitério, permanece a mesma. Entre um enterro e outro, eles já sabem o que fazer."Mas tem dia que eu chego acabado. Posso fazer só um sepultamento, mas o emocional da família passa para mim. É aquela coisa de: 'por que está acontecendo isso?", explica. No Campo Santo, além dos equipamentos de proteção, os profissionais que trabalham com sepultamento têm encontros periódicos com uma psicóloga. Em rodas de conversa, falam sobre o momento que têm vivido e como isso afeta o trabalho. 

Para resistir, ele busca forças na fé cristã. Paulo conta que é o que lhe conforta, especialmente quando lembra dos sepultamentos. "Eu choro na maioria dos que faço, me emociono quando vejo mães chorando. Já enterrei pessoas com a mãe falando em meu ouvido para não enterrar o filho. O dia a dia é muito duro", diz.  Paulo busca conforto na fé cristã para lidar com as dificuldades do trabalho (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Como desligar Enquanto alguns buscam o conforto espiritual, outros coveiros recorrem ao apoio da família. Esse é o caso do auxiliar de serviços diversos Efyson Araújo, de 42 anos. Além de acompanhar alguns sepultamentos, ele também é um dos profissionais designados especificamente para operar o crematório do cemitério. 

Há um ano e oito meses no Campo Santo, ele também viu a frequência de cremações praticamente dobrar, em comparação ao período anterior à pandemia. De uma média de 30 mensais, agora fica em torno de 60. Para ele, é um aumento grande, considerando que a cremação ainda não é tão popular na cultura brasileira. "De fevereiro para cá, veio uma demanda muito grande. Vimos logo que estava aumentando bruscamente", lembra. 

Por isso, percebeu que precisava cuidar da saúde mental. Em casa, tenta não assistir a telejornais ou acompanhar notícias - algo que sempre gostou de fazer. Ao invés disso, fica conversando com a esposa e o filho de 16 anos para desligar do trabalho. Escuta um pouco de como foi o dia de cada um, para não tirar o foco da própria rotina. "A gente tem que procurar descansar a mente, porque no outro dia vai estar aqui de novo. 

Mesmo assim, nada disso foi suficiente para que controlasse a angústia quando o pai foi parar na UTI, com covid-19, em fevereiro. Ele ficou 21 dias internado no Hospital Espanhol. "Ele é deficiente visual. Imagine um pai que não enxerga nada, que necessita que a gente faça tudo. Ele vive dentro de casa e lá faz as coisas todas, mas, quando sai, depende da gente. No dia que ele chegou no Espanhol, fizeram a videochamada e isso derrubou todo mundo", lembra. Efyson conta que precisou de muito autocontrole para não desmoronar no trabalho. A força que já exercia ao evitar demonstrar algum tipo de choro durante os sepultamentos que faz teve que ser dobrada. "E logo que ele se internou, eu cheguei no outro dia aqui e vim fazer enterro de covid. Mas graças a Deus ele está bem, voltou para casa no dia 9 de março", diz. 

Com 75 anos, o pai de Efyson agora também está vacinado. Apesar disso e do fato de que moram na mesma rua, eles não se encontram. No máximo, ele passa no portão para cumprimentar o pai, que vive com três de suas irmãs. "Quando vejo algumas situações (de aglomeração), digo logo à minha esposa: ele não viu o que eu estou vendo todo dia. Se todo brasileiro hoje tivesse a oportunidade de trabalhar em um cemitério para ver o que tem acontecido, mudaria bastante o jeito de pensar e a forma de viver", reforça. O momento de desligar do trabalho também foi a maneira que o funcionário do Cemitério Municipal de Brotas, Genivaldo Pereira, 36 anos, encontrou para continuar enfrentando a pandemia. Logo no início, chegou a mandar os filhos para Entre Rios, para ficar com a família da ex-esposa. Acreditava que era uma forma de protegê-los.  Genivaldo recorre à família para desconectar (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Com o avanço da doença pelo interior do estado, porém, logo voltaram a conviver. No cemitério, atividades básicas se tornaram um desafio. Evitava até beber água, para não ter que tirar os EPIs. 

Mas ele também viu o número de enterros aumentar, desde o começo do ano. "Antes, a gente tinha de 6 a 7 sepultamentos por dia. Hoje, são 18, 19, somando tudo, não só covid. Até no horário de almoço tem sepultamento", conta. 

Por isso, ao chegar em casa, recorre aos cinco filhos. Brinca com eles, conversa com a esposa."Isso me preenche, o seio da família. Acaba que é o que faz a gente esquecer um pouco do trabalho. A gente aprende a se adaptar à nossa rotina", completa. Genivaldo teve covid logo no começo da pandemia, no começo de abril do ano passado. Na época, teve apenas sintomas leves. Hoje, ele também já tomou a primeira dose da vacina. A segunda só deve acontecer em junho, por ter recebido o imunizante de Oxford, que tem o intervalo maior. A preocupação, contudo, não acabou. "Mas aqui é o melhor emprego, porque é onde você aprende mais sobre amor e sobre respeito", diz. 

Categoria Os coveiros de Salvador podem ser representados por mais de uma entidade, a depender de onde trabalhem. No caso dos do Campo Santo, são ligados ao Sindsaúde Rede Privada, por serem vinculados à Santa Casa de Misericórdia. O piso da categoria começa em cerca de R$ 1,1 mil. 

Mas, de acordo com o diretor de imprensa e comunicação do sindicato, Adauto Silva, há uma compreensão geral de que houve aumento de demanda para os trabalhadores. O piso salarial começa com os auxiliares e, em seguida, com os pedreiros. Eles recebem, ainda, um adicional de insalubridade.

"Os sepultamentos aumentaram muito. Por isso, estamos lutando pela taxa de insalubridade máxima para todos os profissionais da área de saúde. Hoje, a maioria recebe 40%, mas deveria ser de 20%, pelas próprias circunstâncias. A gente vê a quantidade de óbitos que está tendo", explica.  Categoria recebe 20% de adicional por insalubridade (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Função veio com a criação dos cemitérios; profissionais devem ter ‘cuidado permanente’ com saúde mental

É difícil dizer exatamente quando a profissão de coveiro passou a existir. É possível, porém, fazer uma relação com a própria história do surgimento dos cemitérios enquanto instituição, segundo a historiadora Luciana Onety, doutoranda em História Social pela Ufba e coordenadora do curso de História e Letras da Unijorge.

"Até a Idade Média, era proibido enterrar seus mortos longe de casa. O comum era o morto ser enterrado perto da família. Só que vão haver decretos exigindo o afastamento do morto das imediações da urbi (cidade). Eles vão entender que o morto tem que ser enterrado fora da cidade e aí vão começar a surgir os primeiros cemitérios", explica ela, que estuda representações da morte. 

Mas ainda não era algo comum. Prevalecia a crença de que a pessoa deveria ser enterrada o mais próximo possível que de um ‘campo santo’, que era a igreja. O primeiro cemitério ‘extra muros’ oficial da Bahia foi justamente o Campo Santo, inaugurado originalmente em 1836. No entanto, esses seriam os coveiros ligados aos cemitérios. 

Ao mesmo tempo, não é difícil de imaginar que sempre existiu alguém que fizesse o serviço de enterrar os mortos."Nem todo mundo gosta de ter contato com o corpo morto porque a morte sempre foi um tabu. O coveiro é um trabalho muito importante, mas ainda não é bem visto, ainda que essencial. Mas imagine o que seria de nós, se não fosse o coveiro, nessa situação que vivemos hoje", pondera. Estudos sobre esses profissionais costumam indicar maior vulnerabilidade física e psíquica justamente pelas condições de trabalho, como aponta a psicóloga Jeane Tavares, doutora em Saúde Pública e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). "O estresse gerado pela exposição continuada à violência, à morte e ao sofrimento soma-se à falta de suporte social e cuidados cotidianos, à precarização do trabalho, às cobranças de familiares e superiores e, por fim, potencializam adoecimentos e complicações nos processos de luto dos profissionais”, analisa. 

Em tempos como a pandemia, com maior demanda de trabalho, uma eventual sobrecarga pode contribuir até para o aumento de acidentes, como a contaminação. O esforço físico e a ansiedade, de acordo com a professora, podem levar a um estado de exaustão que inclui sintomas físicos, afetivos e cognitivos. "A proteção da saúde destes trabalhadores envolve questões externas ao ambiente de trabalho como tempo para descanso, lazer, alimentação adequada, ter uma rede de suporte social que possa apoiá-los no enfrentamento dos estigmas relacionados à profissão e à possibilidade de serem vistos em suas famílias e comunidades como potenciais disseminadores do vírus", diz.Para Jeane, pela própria natureza do trabalho, esses profissionais devem contar com cuidado permanente com a saúde mental - ainda que, na pandemia, seja "esperado" que ninguém esteja realmente bem. 

"No entanto, no caso dos profissionais do sistema funerário que estão ‘na linha de trás’ e dos profissionais de saúde que estão na ‘linha de frente’ da pandemia é importante que cada sujeito identifique alterações acima da sua capacidade de enfrentamento. Não é preciso nem desejável chegar à exaustão, ter crises de ansiedade, pensamentos de inutilidade, desesperança ou ideação suicida para procurar apoio psicológico", reforça.