Conceição Evaristo, 75 anos: 'Estou cansada, mas agradeço à vida'

No dia do seu aniversário, escritora mineira participa de live com a moçambicana Paulina Chiziane, nesta segunda (29), às 15h, no Youtube do Itaú Cultural

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 29 de novembro de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: divulgação

Conceição Evaristo completa 75 anos nesta segunda-feira (29). Escritora, professora, doutora, militante e tantos outros títulos que acumulou durante essas sete décadas e meia de vida, ela se disse cansada. Mas Conceição Evaristo também é grata, ainda cheia de esperança e ideias na cabeça - e uma caneta cheia de munição.

Para festejar a data, o Itaú Cultural realiza nesta data, às 15h, uma live com a participação da escritora mineira juntamente à moçambicana Paulina Chiziane, que acaba de vencer o Prêmio Camões de Literatura. O programa será exibido no site e no Youtube da Instituição, a partir das 15h.

"Eu chego cansada aos 75 anos, não há como dizer que não estou. Essa situação pandêmica, o isolamento social, isso tudo mexeu muito comigo. Eu brinco que, se não fosse a covid, não saberia que sou idosa. Quando me vi inscrita nessa vulnerabilidade das pessoas mais velhas, jogaram minha idade na cara", disse.

Do outro lado da moeda, a gratidão vem banhada em esperança, que é fruto das percepções que Conceição tem em relação a uma juventude, negra e brasileira, dando continuidade à caminhada que ela trilha durante a vida: "Sou muito grata à vida, por me dar tempo de ver os meus sonhos pessoais e coletivos realizados. Ver uma juventude negra estudando, pesquisando. Bastante jovens escrevendo e produzindo, batalhando para um dia chegar às grandes editoras. Ver essa juventude continuando nosso caminho, falando que nossos passos vêm de longe. Aos 75 anos, é motivo, sim, de comemoração", afirma Evaristo.

Autora de Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006), Conceição  Evaristo conquistou o terceiro lugar no Prêmio Jabuti 2015 com o livro de contos Olhos D’água (2014). Com uma obra de referência na luta contra o machismo e o racismo, traduzida para o francês, espanhol e árabe, a escritora defende que “a posse da Língua Portuguesa não pode ficar restrita aos muros de uma universidade”.    “As classes populares devem se apossar da literatura e da escrita como um direito do cidadão e da cidadã”, defende ela, que é doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Em entrevista ao CORREIO,  falou sobre a sua candidatura para Academia Brasileira de Letras, a marginalização de escritoras negras e preferiu não comentar o caso recente ocorrido no Colégio Vitória Régia, em Salvador, onde uma professora foi afastada por utilizar sua obra mais conhecida em sala de aula.

CORREIO: No seu livro Escrevivência: A Escrita de Nós, a senhora traz uma reflexão sobre a escrita não ser uma possibilidade de DOMÍNIO porque o termo domínio não dialoga com a sua subjetividade e traz um forte sentido de colonialidade. A senhora pode comentar um pouco sobre essa ideia de dominar a escrita a partir da perspectiva da escrevivência, sobretudo quando falamos da subjetividade de pessoas negras?  Conceição Evaristo: Quando se pensa a escrita, a linguagem, estudo da língua e sua aprendizagem, historicamente, para povos que passaram por processos de dominação, sabemos que a língua foi um meio para isso. As nações europeias, ao chegarem em África, impuseram a língua. Aqui no Brasil, as comunidades indígenas também tiveram de aprender a língua portuguesa. A língua é um meio de dominação. Os processos de aquisição da língua culta, da língua falada pela elite, também são processos de dominação. O que você aprende na escola? Aprende a linguagem dita como correta e o que você falar fora dessa linguagem é considerado uma deficiência: fulano fala mal, fulano não sabe falar português. Ora, mas também temos uma experiência que foge ao padrão colocado pelas escolas, pelo considerado como alta literatura. É a oralidade, ainda com alguns resquícios das línguas que os povos africanos trouxeram para o Brasil. Essa experiência com a oralidade não é valorizada. Essa oralidade fala muito de nossa subjetividade, essa oralidade enquanto o corpo, o gesto, o olhar, as palavras que esquecemos… tudo isso vem de uma experiência negra e diaspórica. E isso não é considerado como sabedoria, como criação.

CORREIO: Essa linha de raciocínio motivou manter os textos de Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo, do jeito que ela escrevia neste projeto de reedição? Conceição Evaristo: Foi muito isso. Por que alguns acadêmicos e críticos literários se sentiram incomodados com essa publicação? Exigiam que fosse feita uma correção do texto de Carolina. Mas, para corrigir alguma coisa, você considera que essa coisa tem um dado de erro, que essa coisa é errada. Ao lermos os registros de Carolina, não consideramos como errado, consideramos como diferente. Só que as pessoas analisam o diferente acompanhado de um sinal de menos. O que é diferente carrega essa marca de estranho, exótico, de menos valia. E não consideramos o registro de Carolina como errado. Consideramos como diferente, mas não diferente com a marca de menos, é diferente na probabilidade de ser. O registro de Carolina é o registro possível de ser, de existir. Então, não tinha porque corrigir. Algumas correções tiveram de ser feitas por causa do acordo de Língua Portuguesa, já que o livro tem, também, um objetivo comercial. Algumas poucas coisas que a editora considerou necessárias, foram feitas. Mas o que era possível de preservar o registro, até para observar o processo de criação de Carolina. As pessoas esquecem que uma das coordenadoras do conselho é a filha de Carolina Maria de Jesus e ninguém melhor do que ela para lidar com a linguagem da mãe. Ela é a voz máxima.

CORREIO: Sobre sua candidatura para a ABL, mas conhecendo o histórico de associações do tipo, sabemos que há um fardo racista muito grande durante sua história. Você considera realmente importante que pessoas pretas dediquem esforço e energia para ocupar seus espaços ou entende que pessoas negras poderiam, talvez, criar os seus próprios espaços de legitimidade? Conceição Evaristo: Eu acho que as duas possibilidades são possíveis. Eu acho justo e acho necessário levar em consideração a nossa candidatura. Porque se trata de uma Casa que representa a literatura brasileira, e ela não pode ser representada a partir de uma única escrita, ou da escrita e autoria somente de homens brancos. E a ABL é uma instituição em que a maioria que a forma são homens brancos. Com algumas mulheres chegando. Ora, se nós estamos falando do Brasil e toda a sua diversidade, a literatura brasileira é diversa também a partir dos locais sociais, experiências de gênero e condições étnicas do sujeito que a produz. As mulheres negras estão escrevendo, há uma autoria indígena muito forte e não se vê representada numa casa que supostamente representa a literatura brasileira. A ABL pode acolher representantes de áreas sociais diversas, com proeminência. Temos um cirurgião-plástico e várias representações que não são somente da literatura enquanto texto escrito. Se ela é uma casa que representa, em princípio, a literatura brasileira, então ela tem de representar o conjunto, a diversidade. Quando lançam a minha candidatura foi muito pensando nisso.

Hoje, a grande decepção foi a não-entrada de Daniel Munduruku. Por que Daniel Munduruku não entra num momento em que a ABL apresenta uma abertura para acolher Fernanda Montenegro e Gilberto Gil? Eu acho que a leitura do mundo se dá pelos livros, mas também pela arte interpretativa, pela música, pelo canto. A entrada de Fernanda Montengro como uma poética do corpo, através da interpretação, e a entrada de Gil com a palavra cantada, a música… já que a academia acolhe não só escritores, não vejo nada de mais. O que não consigo compreender é o porquê de Munduruku, um sujeito indígena, e não há como pensar a arte brasileira sem pensar na nacionalidade brasileira, e o sujeito indígena está profundamente enraizado nisso, não entrar. Ficou uma incógnita. E Munduruku é escritor. Penso se a grandeza da ABL não está muito mais fora dela do que em alguns que estão lá presentes. A Academia se representa pela ausência e mais uma vez perdeu o bonde da história em não incorporar Daniel Mundurku. Mas acho também que são candidaturas que apresentam a vulnerabilidade, fraqueza ou não-consistência nos regimentos da Academia. Ela parece ter medo de incorporar pessoas que realmente representam e poderiam lhe dar um sentido até mais inclusivo, mais nacionalista mesmo. A Academia, com Daniel, representaria muito bem a brasilidade, a nossa nacionalidade. E mais uma vez ela perdeu o bonde da história. Considero minha candidatura vitoriosa por chegar questionando. O importante não é ser a primeira, o importante é abrir caminhos e eu acho que, cada vez mais, e não digo que vamos entrar, mas acho que cada vez mais essas candidaturas vão acontecer e incomodar a academia até o momento em que ela tiver sensibilidade e aceitar a nossa brasilidade. Ali dentro, há uma literatura com brasilidade manca. Isso também não significa que não podemos criar nossos órgãos e instituições. Podemos, mas estamos na raiz da construção desse país. A nacionalidade nos abriga para carregar o piano, mas não para escutar música, nem inventar nossos acordes.

CORREIO:  Uma professora aqui em Salvador sofreu censura e foi afastada de uma turma de ensino médio ao utilizar Olhos D’Água como material didático. A senhora acompanhou esse caso? Por que sua escrita incomoda?  Conceição: Eu vou te responder não respondendo. Estou acompanhando o caso, mas me sinto constrangida em responder porque qualquer resposta que der, vai soar como uma resposta em defesa própria. Eu prefiro não falar sobre o assunto, se você não se incomodar.

CORREIO: Nesta segunda, a senhora completa 75 anos. Como chega a essa idade? O que tem te motivado? E, aproveitando a oportunidade, gostaria de saber qual a pergunta que a senhora sempre quis responder. Conceição Evaristo: Eu chego cansada aos 75 anos, não há como dizer que não estou. Essa situação pandêmica, o isolamento social, isso tudo mexeu muito comigo. Eu brinco que, se não fosse a covid, não saberia que sou idosa. Quando me vi inscrita nessa vulnerabilidade das pessoas mais velhas, jogaram minha idade na cara. Mesmo assim, eu agradeço. Nunca fui uma pessoa de inferno astral, se pudesse eu comemorava meu aniversário um mês antes, durante e após. Sou muito grata à vida, por me dar tempo de ver os meus sonhos pessoais e coletivos realizados. Ver uma juventude negra estudando, pesquisando. Bastante jovens escrevendo e produzindo, batalhando para um dia chegar às grandes editoras. Ver essa juventude continuando nosso caminho, falando que nossos passos vêm de longe, ver a constância e perenidade dessa luta... Eu só vejo por ter uma idade de olhar pra trás e ter meninas com idade de minhas filhas e netas continuando essa trajetória. Isso me alimenta muito. Aos 75 anos, é motivo, sim, de comemoração.

Uma pergunta que eu gosto é sobre o processo criativo. Há muito tempo, falam comigo mais por vias sociológicas, históricas e despreza-se o trabalho estético que temos. Gosto de falar o porquê de escolher tempos, o narrador em terceira ou primeira pessoa, quais são os tipos de linguagem que eu gosto de usar. Esse processo criativo em si, eu gosto muito de ser perguntada e não tenho muita oportunidade de falar.

CORREIO: Entao, fala pra gente sobre o seu processo de criação? Conceição Evaristo: Por exemplo, a escolha do vocabulário. Eu gosto ou do português arcaico ou mais ligado à oralidade. Por exemplo, quando eu estava escrevendo um livro, tinha uma frase que seria assim: ‘só o pai dela não se incomodou com a semelhança com o avô’. Pensei que a palavra semelhança é muito usada, então procurei um termo mais popular e fui para o dialeto mineiro. Em Minas a gente fala ‘parecença’, e utilizei: ‘só o pai não se incomodava com a parecência dela com o avô’. Também me lembro de um conto que escrevi para uma revista e a correção me falou que a forma não era tão usada, eu disse que era a forma que queria, até por ser uma conversa de uma pessoa mais velha, que usaria aquele vocabulário. Isso fala muito sobre a questão das escrevivências. É fruto de observação, de contato com o outro, da oralidade. É algo muito importante em meu processo criativo.

*Agradecimento a Ayala Tude, César Belém, Donminique Azevedo, Juliana Neri, Ivna Pires, Rafael Santana e Vanessa Vitório pela colaboração com parte das perguntas utilizadas na entrevista.